BORDAS DE ALGUIDAR



Em Bordas de Alguidar, exposição patente na Galeria Graça Brandão, Lisboa, Carla Filipe dá continuidade a uma reflexão que tem marcado profundamente o seu trabalho e que se prende com os desenvolvimentos do poder global e suas implicações nas estruturas sociais, culturais e comunitárias das sociedades atuais. Porém, não é a interpretação ou o comentário do mundo que lhe parece interessar, mas antes a possibilidade de operar criticamente sobre ele. Ora esta possibilidade no seu caso, como sabemos, é sempre pensada e formulada a partir de memórias pessoais e experiências vividas, pelo que o seu trabalho apresenta uma reversibilidade de sentido muito particular. Se, por um lado, convoca o mundo através de contingências vivenciais, estas, por sua vez, extravasam o plano pessoal já que se mistura nos dados do próprio mundo, gerando situações inesperadas. 

Para esta exposição em concreto, Carla Filipe apropriou-se da expressão popular Bordas de Alguidar (que significa os restos de comida que ficavam presos no alguidar da refeição), alargando o seu sentido ao contexto da atual crise económica para problematizar precisamente o modo como hoje o capitalismo celebra a obsolescência de certos saberes e práticas e os transforma em excedentes votados ao desaparecimento. 

Se não há cultura, não há nada, um dos trabalhos realizados para esta exposição, é a este respeito exemplar, já que se ocupa de uma atividade profissional quase extinta. Trata-se de um vídeo documental que regista a visita ao espólio de um alfarrabista centenário do Porto que, resistindo aos processos de gentrificação urbana, mantém ainda as portas abertas. A visita ao espaço é guiada pelo proprietário, enquanto a câmara acompanha de perto a inventariação dos livros, a sua arrumação por áreas científicas e nos mostra alguns títulos mais raros ligados à cultura e à arte da modernidade portuguesa, como a “Águia”, a “Ilustração Portuguesa” ou as publicações de Rafael Bordalo Pinheiro: o “António Maria”, os “Pontos nos II” e “A Paródia”. 

É justamente o universo crítico de expressão popular e caricatural, desenvolvido por Bordalo Pinheiro na transição para o século XX, que Carla Filipe convoca e reutiliza nos quatro desenhos com colagem que se juntam à exposição. Intitulados Bordas de Alguidar, em diálogo com “A Paródia” e “Pontos nos II”, estes trabalhos definem uma continuidade narrativa entre um passado pré-republicano e um presente neo-liberal pragmático através da figura do Zé-povinho. Acompanhado de novas personagens (Cavaco Silva, Passos Coelho ou José Viegas), temos um Zé-povinho que agora articula com Angela Merkel, adotando a mesma atitude subserviente que lhe é característica e garantia de pobreza, falta de cultura, recessão, extinção dos setores produtivos ou desinvestimento na educação. 

Mas este ciclo que retorna ganha contornos ainda mais curiosos naInstalação Rochard. Neste trabalho, a artista leva à parede um conjunto de livros abertos adquiridos no alfarrabista que visitou: uma História de Portugal e exemplares do Viajante Universal e doTestamento Vermelho. Sem relação aparente, as narrativas em jogo, histórica e literária, revelam subitamente aproximações surpreendentes tanto estilísticas, assumindo o romance a sua estrutura, como do ponto de vista da ação. Em causa estão episódios históricos de Portugal do século XV e XVI, como as pensões dos professores de filosofia e retórica em dívida ou as expedições pelo oriente em busca de ouro que se cruzam com as aventuras ficcionais de duas personagens que precisam de levantar e trocar as suas bonds, ações e obrigações. O efeito de reflexo que o vocabulário pode repercutir na atualidade é todavia reforçado, não sem ironia, pelos desenhos gravados por traças nas páginas dos livros, um puro ato casuístico que nos sugere uma técnica antiga psicológica de auto-expressão e identidade. 

No último trabalho da exposição, intitulado Mãos vazias: a mão não é só um orgão de trabalho, mas também produto deste, a artista volta a reunir, agora no chão, um conjunto de objetos antigos, concretamente 41 ferramentas de trabalho em ferro e madeira compradas em feiras de 2ª mão. Se o comércio destes objetos promove um fetichismo em torno das suas formas e memórias, Carla Filipe, ao resgatar e reinventar o seu uso na galeria, inverte aquela ordem, ativando o potencial emancipador dos saberes e práticas que o presente soube esquecer. 

Neste sentido, Bordas de Alguidar rompe criticamente com a circularidade inerente a uma narrativa que insiste em repetir-se e com um certo bem-estar proporcionado por uma consciência cínica de si. 


Sofia Nunes 


http://www.artecapital.net/criticas.php?critica=336



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As três regras da idiossincrasia I Carla Filipe's three rules of idiosyncrasy




Idiosyncrasy
noun
A behavior or way of thinking that is characteristic of a person.
A language or behaviour that is particular to an individual or group.
A peculiarity that serves to distinguish or identify.


Se existe um elemento, uma marca ou uma característica suficientemente abrangente que permita delimitar, ou pelo menos encetar um entendimento mais vasto e articulado do trabalho de Carla Filipe, terá que ser, sem dúvida, uma certa noção de idiossincrasia. No entanto, problematizar uma prática artística tão complexa, rica e multifacetada a partir de uma noção aparentemente tão simples pode apresentar-se como um exercício redutor, algures entre uma simplificação abusadora ou um mero acto de ilustração do conceito. Assim, mais do que vincular (conformar) o trabalho de Filipe a uma dimensão meramente idiossincrática, pretendemos realizar o exercício inverso, isto é, a partir do seu corpo de trabalho, e de Arquivo Surdo-Mudo, o projecto que agora se apresenta, tentar esboçar um conjunto de elementos que possam constituir (e delimitar) um modo de operar fundamentalmente idiossincrático. Dito de outro modo, acreditamos que não só é possível como relevante definir, a partir da obra de Filipe, um conjunto de “regras” que  enformam a idiossincrasia enquanto categoria apta a problematizar a prática artística contemporânea.


O primado da autobiografia

O trabalho de Carla Filipe tende a convocar um universo simultaneamente específico e único. Esse universo parte sempre de elementos autobiográficos ou de vivências diárias, recolhidas de uma forma diarística, e que operam como o local psicológico, o ponto de vista, a partir do qual a artista entende e se relaciona com o mundo que a rodeia. Tal postura é mais intuitiva que racional, mais especulativa que sistematizadora e, nas palavras da própria artista, porque é de autobiografia que se trata, “é impossível (…) sintetizar todo o meu processo a conceitos contemporâneos”. Assim, esta impossibilidade (ou irrelevância) declarada de conformar um corpo de trabalho, e o processo que está na sua origem, a uma estrutura sistemática e articulada de pensamento configura a centralidade e a irredutibilidade da subjectividade biográfica que se encontram no cerne do projecto de Filipe. Não será, portanto, de estranhar que na génese de Arquivo Surdo-Mudo esteja o universo fantasmagórico e sedutor da experiência do Comunismo em Portugal durante a sua infância nos anos oitenta. Se, por um lado, o Comunismo era percebido pela jovem Carla Filipe como algo extremamente assustador, o resultado de expressões populares negativas (a mais conhecida sendo “os comunistas comem crianças ao pequeno-almoço”), a ameaça de uma Guerra Civil semelhante à espanhola e a tentativa da sua família negar, perante a comunidade, a militância de um tio, por outro era também terrivelmente apelativo, já que amigas suas, filhas de ex-combatentes do Ultramar, lhe transmitiam uma visão do Comunismo alegre e feliz, com a promessa de uma vida moderna e colectiva na qual a Festa do Avante simbolizava o momento de celebração desse novo estilo de vida. É, então, a partir da sua própria percepção do que era o “Leste”, antes da queda do Muro de Berlim, que Filipe parte para o projecto que expõe em Praga, subjectivando e descentrando geograficamente uma versão muito particular (e sua) do que se tornou conhecido como pós-socialismo.

Parece-nos, portanto, que a centralidade da autobiografia, enquanto motor de uma visão subjectiva do mundo, que vislumbramos em Arquivo Surdo-Mudo, parece configurar um primeiro elemento delineador do nosso conceito de idiossincrasia.


A relevância do contexto

Ainda que a pulsão subjectivante, associada ao ímpeto autobiográfico, habite o cerne do seu trabalho, a artista não padece de nenhuma forma de autismo autoral, reminiscente de um ideal romântico de auto-exclusão. Surpreendentemente, a autobiografia torna-se tanto mais relevante quanto maior é a sua articulação com o colectivo, articulando-se com movimentos sociais ou categorias de apreensão do mundo mais abrangentes como história, política ou economia. Existe assim em Filipe, para além das referências à sua própria biografia, um olhar atento, curioso e porventura crítico sobre o contexto em que se insere. Esse olhar consubstancia-se num modus operandi específico, onde o trabalho de campo ganha uma preponderância marcante e a noção de processo atravessa toda a sua obra. Reunindo sempre referências sobre o tema ou o contexto em que escolhe trabalhar, os projectos que desenvolve relacionam-se sempre directamente com o contexto em que são expostos e com o público que a eles acede. Assim, em Praga, e partindo da experiência de juventude descrita anteriormente, marcada por uma alteridade não só ideológica, como também geográfica, estabelece um ponto de contacto entre os episódios da história recente da República Checa e de Portugal, operando nessa tradução um nivelamento das expectativas do visitante, que perde a capacidade de distinguir e identificar a origem das referências que lhe são apresentadas. Grandes bandeiras alusivas às lutas políticas do passado são apresentadas, mas o seu conteúdo, as mensagens que transmitem, são apagadas, mantendo-se apenas os seus aspectos formais. Nesta remoção do que é particular (específico), o texto e a língua, o leste comunista e o extremo ocidente apresentam-se como intercambiáveis. O contexto continua também a desempenhar um papel central no livro de artista que Filipe apresenta em Arquivo Surdo-Mudo. Um jornal de grandes dimensões, exemplar único, escrito-desenhado a esferográfica sobre papel utilizado pela churrasqueira América, no Porto, para embrulhar frango assado, apresenta traduções para checo de autores portugueses como José Gil, Eduardo Lourenço, Padre António Vieira, Fernão Mendes Pinto, e também da artista e transporta, desta forma, um conjunto de narrativas sobre o local da sua origem para o da exposição. Tradução e transporte são assim as ferramentas escolhidas por Filipe para trabalhar sobre a relação entre o contexto de origem e o contexto da exposição, entre original e traduzido (ou copiado), assumindo desde o início o carácter sempre contingencial e potencialmente disruptor que as suas acções podem tomar.

A forma como o contexto é interiorizado e utilizado pela artista, não apenas como ponto de partida, mas também como processo de trabalho e eventualmente ponto de chegada, parece sugerir a sua centralidade enquanto elemento definidor de uma prática artística dita idiossincrática.


A pulsão do arquivo

Vimos que o primado da autobiografia e a relevância do contexto se apresentam como elementos centrais no entendimento do trabalho de Carla Filipe e acreditamos que possam ser definidos como aspectos constitutivos do conceito de idiossincrasia, entendida neste contexto, como uma ferramenta ou categoria que nos permite desenvolver uma reflexão sobre a prática artística contemporânea. Sendo aqueles dois elementos interdependentes, na medida em que é a partir da  autobiografia que a artista pensa o contexto que a envolve, mas simultaneamente, é o contexto que lhe devolve as experiências que vão solidificar a sua história de vida, um terceiro aspecto, de carácter mais transversal, age não só como síntese mas também, e sobretudo, como materialização dos dois anteriores.
A pulsão do arquivo manifesta-se então como o resultado visível da interacção entre autobiografia e contexto e é partir deste ponto que a artista desenvolve o seu trabalho. O arquivo, assim definido, é entendido de uma forma distinta do que tem vindo a ser prática comum na última década e que foi já apelidado de impulso ou febre arquivista e onde o artista assume, de alguma forma, o papel de um historiador ou, mais especificamente, de um historiógrafo. O arquivo, para Carla Filipe, encontra-se em permanente construção e testemunha o seu interesse pela lógica do documento, do testemunho, não apenas através de jornais, mas por toda uma panóplia de material impresso, bem como outros objectos que ajam enquanto repositórios do que é, e que foi, notícia. De toda a informação que recolhe, uma parte fica para o seu arquivo pessoal e outra é utilizada no trabalho que origina a recolha. A lógica do inventário, desta forma constituída, permite a Filipe a manutenção de uma gramática de interesses, dos seus interesses, a que recorre sempre que necessário e a partir do qual consegue estabelecer episódios narrativos, sejam a história dos caminhos-de-ferro no Reino Unido ou os fenómenos do Entroncamento, por exemplo. Em Arquivo Surdo-Mudo, adjectivação que não será de todo ingénua, o arquivo age mais uma vez como materialização do complexo jogo de forças entre o individual e o colectivo. Assim, uma colecção de imagens, seleccionada do arquivo pessoal que a artista tem vindo a acumular ao longo dos anos, é apresentada em diversos conjuntos. As imagens, que funcionam como ponto de entrada para um imaginário despoletado pela ideia do Comunismo, e incluem postais antigos, recortes de livros, propaganda, autocolantes, entre outros, sinalizam a tentativa, por parte de Filipe, de compreensão tanto dos acontecimentos geopolíticos que estiveram na génese da queda do bloco de leste, como da disjunção perceptiva relativa a esses mesmos eventos, por ambos os lados da cortina ideológica. A pulsão arquivista actua então como uma forma pessoal e subjectiva não só de se relacionar, como de estruturar o mundo à sua volta. É o arquivo, portanto, que permite articular a sua visão do mundo com a visão que o mundo dela tem e assim criar um corpo de trabalho em que o pessoal é o colectivo que é o pessoal também, numa circularidade ontológica que trespassa e subverte, de algum modo, a hierarquia entre subjectividade e objectividade, especulação e sistematização, indivíduo e comunidade.

A pulsão arquivista é o último elemento, ou regra, que extraímos a partir do trabalho de Carla Filipe, assim delimitando uma tríade especulativa que tenta apreender o conceito de idiossincrasia, que acreditamos constituir um ponto relevante na discussão dos pressupostos que enformam a prática artística contemporânea. Ainda que dissemelhante dos outros dois, porque transversal, a estrutura e modo de funcionamento do arquivo permite ligar e tornar visível a mútua dependência que biografia e contexto exercem entre si, abrindo assim o campo de possibilidades virtualmente inesgotáveis da idiossincrasia.


João Mourão e Luis Silva

nota : texto para a exposição "Arquivo Surdo-Mudo", Tranzit.Display , Setembro de 2010





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Da biografia como história


Temos vindo a assistir, nos últimos anos, a uma tendência crescente entre os artistas mais jovens para, alicerçando as suas práticas numa recuperação mais ou menos metódica de alguns temas centrais da modernidade estética e social, a partir daí construírem estruturas plásticas onde o presente e esse passado se confrontam. Esse é o caso, por exemplo, dos inúmeros trabalhos que recuperam obras da cultura arquitectónica ou urbanística de modernidades específicas – do leste europeu, da América latina, etc. –, para as colocarem em modelos de questionamento tensivo, através de dispositivos escultóricos, instalações videográficas, apropriações fotográficas comentadas e propostas similares. Se nalguns casos este tipo de estratégia se compreende e acaba por resultar positivamente, confesso que na maior parte destes trabalhos não consigo já vislumbrar mais do que maneirismos conceptualmente torpes e formalmente aborrecidos.
Tal não é o caso da prática que delimita o território criativo de Carla Filipe, artista que lenta, paciente e incisivamente tem vindo a trabalhar um universo muito próprio, em que elementos autobiográficos se cruzam com indagações de cariz mais abrangente e onde história, política e sociologia se podem imiscuir num plano de pesquisa sempre irreverente e idiossincrático.
O desenho é o meio mais imediato e recorrente na sua obra: não o desenho enquanto construção de um qualquer tipo de reinterpretação do mundo através de formas ou signos esteticamente (auto)referenciais, antes um processo que visa a criação de pequenos episódios narrativos onde a linguagem (a palavra) se destaca. Muitos dos seus trabalhos configuram recolhas quase diarísticas de experiências vividas, que tanto podem passar por viagens, observações de padrões de comportamentos sociais contemporâneos (como as culturas punk, pop ou rock contemporâneas) ou, de modo primordial, vivências que emanam de uma circunstância biográfica particular, isto é, o facto de ser filha de ferroviários.
Numa conversa de circunstância aquando da compra de um bilhete de comboio dizia-me o vendedor que a mais baixa incidência de divórcios se encontrava entre os ferroviários. Estranhei o dado estatístico e, mostrando-lhe a minha surpresa, explicou-me o personagem, sorrindo, que tal se ficava a dever ao facto de muitos matrimónios se manterem enquanto fachada somente para deste modo os descendentes não perderem direitos específicos desse estatuto. Este episódio fez-me pensar nos universos paralelos que compõem a nossa sociedade, onde interesses corporativos frequentemente desconhecidos de terceiros podem, de facto, tornar-se determinantes em biografias individuais. E interessou-me, sobretudo, por ver nele espelhado o modo ao mesmo tempo sincero, catártico e por vezes irónico como Carla Filipe verte para o seu trabalho este estatuto corporativo. Dele deduzimos as centenas ou milhares de horas passadas em viagens de comboio, das quais muitas terão sido aproveitadas como espaço de ateliê improvisado ou como espaço de observação vital. Como referia George Simmel no início do século XX, foi com o advento do caminho-de-ferro, dos autocarros e dos eléctricos que as pessoas ganharam a oportunidade de poder ou dever olhar-se umas às outras minutos ou horas sem se falar.
Para além do desenho – que contém, como referi, uma dimensão processual e contextual que lhe define o carácter –, a artista também se movimenta no território da performance e da instalação. Nestas regressam temas de sociabilidade (a criação de hortas comunitárias que reenviam para as hortas dos ferroviários) ou intervenções mais recentes como Desterrado, na Manifesta que decorre actualmente em Múrcia, onde a artista se debate com a questão premente da imigração num contexto de cruzamento forçado e tenso de culturas.
Se as vivências pessoais lhe servem de sismógrafo vital para a apreensão das movimentações políticas e sociais que a envolvem, estas devolvem à sua biografia (que aqui só interessa na medida em que supre uma passagem para a sua prática artística continuada) uma dimensão especulativa universal. No caso da obra que agora se apresenta, ela corresponde a um trabalho de campo realizado a partir de uma residência artística em território britânico. Naturalmente, a autora dirigiu o seu interesse para a história dos caminhos-de-ferro neste país, que, como sabemos, neles encontrou uma espinha dorsal vital para a construção do espaço da modernidade. Assim, aquilo que nos é dado contemplar tem por base uma série de apropriações de páginas de jornal de diversas épocas onde esta temática é abordada, imagens recolhidas in situ ou, na maior parte dos casos retiradas da internet, num fenómeno que curiosamente replica a experiência dos jovens estudantes de Belas-Artes em Portugal que, há uns anos atrás, conheciam a maior parte das obras mediante reproduções em revistas ou catálogos. O que Carla Filipe nos apresenta resulta naquilo a que poderíamos chamar um meta-texto no qual, na sequência de uma prática continuada, o inglês enquanto língua hegemónica se curtocircuita com um português de recurso. A falha hermenêutica daí decorrente remete para a ilegibilidade daquilo que voluntariamente a artista pretende que se mantenha como parte de um processo não fechado, num desvelar temporário de um work in progress, de um arquivo ainda em fase de construção.
Esta condição corresponde e ecoa, ainda que de forma porventura mais intuitiva do que racional, um estado recorrente na análise cultural contemporânea, no contexto da qual a estética do fragmento, do fracasso enquanto entendimento fundamental de uma realidade em permanente mutação e, finalmente, do carácter rizomático dessa mesma realidade se sedimentam como modos de apreensão mais avisados daquilo que nos rodeia.
Descentrar, então. O colapso origina uma leitura aberta das imagens-texto. Ruínas modernas, a imigração, a morte e os seus sistemas de organização, o corporativismo (sindical), a guerra ou o estatuto da mulher são referentes apropriados sem claro destino judicativo. A construção de sentido é pressentida enquanto construção de um putativo sentido individual. Ou seja, aquilo que ressalta no trabalho (neste trabalho) de Carla Filipe é a sua vontade de se apropriar criativamente da realidade para nos propor uma interpretação que resulta tanto mais penetrante quanto nos soubermos deixar levar nas suas derivas trans-históricas


Miguel von Hafe Pérez


nota: texto para a capa da publicação de artista "An ilustrated guide to he British Railways to my Study", 2010
/ Fundação Calouste Gulbenkian ( Portugal / UK)




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Texto de capa


Antes mesmo de existir, já a este texto estava reservado lugar nas margens do livro. Relegado para a capa, ocupa uma camada deste que serve para anunciar o que ele encerra e o que o separa, e ao mesmo tempo protege, do que lhe é exterior, do que está à sua volta. O que se estende ao longo das 64 páginas do livro é o trabalho de Carla Filipe; informado por referências a textos e desenhos preexistentes, ele não deveria partilhar o mesmo local com textos que tivessem os seus como referente. Escrita e desenho associam-se em algumas páginas que reproduzem trabalhos de frottage de Carla Filipe, criados a partir de placas comemorativas encontradas em estações ferroviárias no Reino Unido. O desenho da artista limita-se aqui à acção da mão que pressiona um lápis contra uma folha de papel e o desloca para trás e para diante decalcando linhas de letras em relevo que compõem os nomes e cargos de ferroviários mortos durante as Guerras. Exercido deste modo mecânico, o desenho é utilizado como um processo de arquivamento da escrita, ao mesmo tempo que a escrita dessas placas, que haviam estado no mesmo lugar durante anos a fio, se vê agora impregnada com os movimentos do corpo vivo que actua num tempo e num lugar específicos. Subentende-se uma recusa em usar a técnica fotográfica para o registo de uma dada realidade – o que não significa que Carla Filipe não utilize ocasionalmente fotografias que encontra ou que tira ela mesma como prova de que esteve mesmo num determinado local. Noutras páginas, a escrita está separada das imagens e, uma a uma, as letras são meticulosamente desenhadas a tinta, embora adoptando a aparência de caracteres impressos até ao ponto da simulação. Todo este trabalho é enformado pela dialéctica entre material impresso preexistente (fotografias, ilustrações, lettering) – que restringe o gesto fluido – e a prática do desenho – que impregna os objectos de reprodução mecânica com a incomparável aura do que é feito à mão, único, moroso, revelador de uma sensibilidade distintiva. A sensibilidade, reconhecida na especificidade dos traços, modo singular de Carla Filipe trabalhar a conjunção de condições associadas à materialidade das suas fontes – mais uma marca do corpo do que objecto de decisão –, insinua-se no decurso do processo de devotamente copiar o que se encontra à mão. Por outro lado, fomentado pela memória e o desejo, a autobiografia e preocupações sociopolíticas, o trabalho da imaginação induz uma selecção de determinados objectos e a configuração da respectiva transcrição. A suspeita em relação à preponderância autoral que Carla Filipe partilha com outros artistas contemporâneos reclama a adaptação da consciência imaginativa à escolha e à exposição e a sujeição das particularidades da realização estética às práticas entediantes do refazer, as quais não são todavia determinadas por uma estratégia rigorosa de apropriação, antes estimulam a erupção de brechas entre a fonte e a cópia. A artista permite-se então explorar esses espaços vazios através da introdução de escritos e ilustrações de sua invenção e da criação de conjunções afectivas. A ambição de delegar a criação autoral numa prática da cópia é, no caso de Carla Filipe, acompanhada por uma necessidade de esclarecer o seu próprio posicionamento: em vários dos seus trabalhos ela refere-se a si mesma como uma artista proveniente das margens geográficas da Europa e das margens sociais do mundo da arte globalizada, como alguém que cresceu em localidades periféricas de Portugal, no seio de uma família de ferroviários, e que domina mal o inglês (o que se reflecte nas frequentes flutuações entre o português e o inglês nos seus textos). Carla Filipe aborda os seus temas como uma estranha, expondo contudo os pontos de contacto que com eles mantém – seja através da evocação da história da sua família quando aborda uma questão relativa aos caminhos-de-ferro, seja pela referência à sua experiência enquanto paciente no contexto de um trabalho encomendado para celebrar o aniversário de um hospital. Cada uma das suas obras abraça um tema em particular, ocasionalmente mas nem sempre em resposta a uma encomenda: acontecimentos miraculosos de crescimento biológico no Entroncamento, durante o Fascismo, desenhos seus rejeitados, uma viagem de carro do Porto a Kassel para visitar a documenta, uma ida a Londres, outra a Roterdão (os três trabalhos expostos em conjunto sob o título “Estudo de campo: desertar”), os caminhos-de-ferro, o Hospital de São João no Porto, o grupo industrial RAR, sediado na mesma cidade, etc. Carla Filipe adopta a atitude de uma etnógrafa em busca de revelações na internet e viaja através da Europa para reunir conhecimentos sobre culturas remotas (inclusive as do seu próprio país) – ironicamente, uma pessoa originária das esferas marginais do Sul a investigar as sociedades da abundância e do poder. Em alguns casos, o seu trabalho baseia-se em panfletos, anúncios, mapas, jornais gratuitos e fotografias que colhe em momentos determinados e guarda para usar mais tarde. Noutros ainda, faz pesquisa especificamente com o objectivo de obter imagens e textos para tratar um determinado assunto. A acumulação de factos e acontecimentos impõe-se, submerge o tema; ou então os documentos relevantes são obtidos através de uma pesquisa focalizada – as mais das vezes, através de elementos da cultura de massas. O desafio está em aceitar e recusar, em afunilar as opções que permitem avançar e em derivar a partir de um foco inicial de atenção. A pesquisa respeitante ao Hospital de São João revelou que o respectivo Serviço de Urgência foi inaugurado em 1964, na sequência da afluência ao hospital de numerosas vítimas do grave acidente ferroviário nesse ano ocorrido em Custóias, o que fez Carla Filipe regressar às suas origens familiares; o desenho do próprio edifício hospitalar e ainda as pesquisas da artista em torno dos caminhos-de-ferro britânicos evocaram o passado ditatorial de Portugal; a sua viagem artística a Roterdão confrontou-a com a destruição da cidade durante a Segunda Guerra Mundial; o encontro com as enfermeiras de Richard Prince relembraram-lhe o hospital e a sua própria prática de copiar matéria impressa preexistente. A demora é uma condição determinante para a criação de um trabalho, quer pelo tempo necessário para a cópia paciente de extenso material documental quer pelo tratamento de um tema como as viagens a vários destinos europeus, desenvolvido anos depois dos acontecimentos reais. A demora e o hiato entre a cópia e o original dão carta branca à imaginação. Todos os temas de Carla Filipe são sistemas sociais bastante bem definidos: os caminhos-de-ferro, um hospital, uma unidade de produção industrial, uma cidade, a família. O seu trabalho consiste no processamento de documentos que evocam estes sistemas através de casos particulares. O objectivo não é analisá-los nos moldes em que a investigação científica o faria mas antes traduzi-los nas páginas de um trabalho artístico que expõe uma visão idiossincrática da história e da sociedade. Ao subordinar a sua criação artística a escritos e ilustrações preexistentes, Carla Filipe coloca-se a si mesma na origem dos relatos transversais que subvertem o conhecimento comum para oferecer vislumbres de uma incrível realidade.

Ulrich Loock



nota: texto para a capa do livro de artista  "An ilustrated guide to he British Railways to my Study", 2010




    @ susanapomba 



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da exp. " O Povo reunido jamais será - representações gráficas " no Museu do Neo - Realimo 











Arte, “documentalidade” e interpretação
David Santos

“Não existem factos, apenas interpretações”
F. Nietzsche

Nos anos 60, Susan Sontag expressava a sua revolta ao publicar “Contra a Interpretação”, um conjunto de ensaios que procurava contrariar o efeito aparentemente asfixiante que caracterizava o pluralismo interpretativo da obra de arte[1]. Reivindicava-se aí um regresso à experiência directa com a obra, diminuindo os efeitos nocivos de uma interpretação sistémica e infinita. Apesar de tudo, é hoje difícil aceitar que a interpretação possua um projecto de anulação dos valores intrínsecos da obra de arte. Da teoria cultural à análise literária e artística, o universo interpretativo representa com efeito um jogo dinâmico e estonteante que, mais do que empobrecer, confere ao objecto de arte um prolongamento de vida e significados que o mantém actuante perante o receptor. Por outro lado, a diversidade inerente ao paradigma interpretativo pós-moderno é, em parte, responsável pelo descrédito das verdades transcendentes e a ascensão dos efeitos imanentes[2]. Isto é, o particular passou a ganhar terreno perante as teorias gerais e as especificidades ocuparam aos poucos o lugar das generalidades abstractas. Os contextos e a sua observação passaram assim a influir de um modo decisivo em quase todos os domínios da acção humana contemporânea.
Há mais de dez anos que Carla Filipe (Aveiro, 1973) produz arte como resultado de um envolvimento directo com o contexto da sua exibição. As exposições desta artista não assentam na apresentação de um conjunto de obras preconcebidas e depois adaptadas ao “white cube” da galeria, mas no exercício dialogante entre conceitos e práticas processuais que a conduzem a um determinado resultado. O sentido “site-specific” das suas propostas artísticas converte assim cada exposição num cenário aberto às circunstâncias e ao seu potencial crítico, acentuando, a partir de uma cuidada reconfiguração de carácter documental, um jogo de leitura política e social que transforma não apenas os objectos de arte ou os espaços da sua apresentação, como ainda a sua relação com a cultura e a geografia locais.
Desse modo, Carla Filipe realiza no Museu do Neo-Realismo "O Povo reunido, jamais será – representações gráficas" (2009-10), exposição onde se cruza o grafismo de cartazes reivindicativos, acentuando a sua transformação formal e identitária, com a atmosfera contestatária das colectividades locais de meados do século XX. Rasurando as palavras desses cartazes, a artista recorre sobretudo a cores e formas que se insinuam enquanto memória de um gesto de protesto cada vez mais frágil e inconsequente, disseminado hoje por outros meios de contacto informacional, como as “redes sociais”, os “blogs” e lógica de actuação promovida por uma internet cada vez mais omnipresente. Por outro lado, podemos ver como o mítico barco-varino vila-franquense “Liberdade” (o original), levou Carla Filipe a assumir uma posição de partilha e interpretação sobre os valores dessa memória, recorrendo a elementos documentais recentemente doados ao Museu. Entre a etnografia e os modelos gráficos de algumas palavras de ordem, Carla Filipe trabalha aqui um registo crítico que concilia eficazmente a arte e a “documentalidade” do real[3].
Na verdade, o uso do “documento” na prática artística contemporânea propagou-se extraordinariamente e de um modo paralelo “à expansão do âmbito da produção artística, que na última década passou a considerar os fenómenos políticos e sociais um campo de pesquisa privilegiado”[4]. Porém, livre dos constrangimentos ideológicos que colocam a arte ao serviço de um mensagem política, Carla Filipe aprofunda uma prática artística de envolvimento vital entre o autor, a obra e o observador, aproximando-se desse modo da “estética relacional” defendida por Nicolas Bourriaud. Tal como nas palavras do crítico de arte e curador francês, a obra de arte apresenta-se de uma maneira geral, mas também em Carla Filipe, acrescentamos nós, “como um interstício social no interior do qual estas experiências, estas novas ‘possibilidades de vida’, se revelam possíveis: parece mais urgente inventar relações possíveis com os vizinhos no presente do que fazer cantar os amanhãs. […] Os contratos estéticos, como os contratos sociais, são tidos por aquilo que são: ninguém pretende instalar a idade de ouro sobre a Terra, e nós contentar-nos-emos como voluntários em criar os modus vivendi que permitam relações sociais mais justas, modos de vida mais densos, combinações de existência múltiplas e fecundas. Do mesmo modo, a arte não procura mais figurar utopias, mas construir espaços concretos”[5]. O apurado sentido sobre o efeito parcelar de toda e qualquer proposta artística contemporânea, permite a Carla Filipe actuar numa dimensão auto-consciente acerca do alcance ou dos limites da sua acção. Por outro lado, o observador-espectador não é aqui um ser passivo que deve ser instruído – ou activado – em direcção a uma “verdade” metafísica, mas alguém que constrói sempre a sua interpretação, a partir de pequenos dados construídos pelo artista em torno de uma “documentalidade” experimental, e só desse modo se torna activo ou, necessariamente, emancipado. O espectador é, nesta medida, um elemento a quem se exige uma interpretação, assegurando, contudo, que esta será sempre mais rica ou elaborada em função da experiência de cada um dos receptores da obra de arte. Recordemos a este propósito as palavras de Jacques Rancière, “[…] num teatro, exactamente como num museu, numa escola ou na rua, nada existe que não sejam indivíduos que traçam o seu próprio caminho pelo meio da floresta das coisas, dos actos e dos signos que lhes surgem pela frente ou que os rodeiam. O poder comum aos espectadores não tem a ver com a respectiva qualidade de membros de um corpo colectivo ou com qualquer forma específica de interactividade. É antes o poder que cada um ou cada uma tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de ligar o que percebe à aventura intelectual singular que os torna semelhantes a todos os outros na medida em que essa aventura singular não se assemelha a nenhuma outra. Este poder comum da igualdade das inteligências liga os indivíduos entre si, fá-los proceder à troca das suas actividades intelectuais, ao mesmo tempo que os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de todos para traçar o seu caminho próprio. O que as nossas ‘performances’ comprovam – quer se trate de ensinar ou de representar, de falar, de escrever, de fazer arte ou de vê-la – não é a nossa participação num poder encarnado na comunidade. É, sim, a capacidade dos anónimos, a capacidade que faz com que cada um(a) seja igual a todos(as) os(as) outros(as). Essa capacidade exerce-se através de distâncias irredutíveis, exerce-se por intermédio de um jogo imprevisível de associações e dissociações”[6].
Este jogo intenso e incontornável é, afinal, promovido tendo em conta o processo transformador da comunicação. Ou seja, o envio e a recepção de uma mensagem resultam sempre, deste modo, na transfiguração da sua hipotética essência, ou “verdade” aparente, pois o trânsito da sua forma reconverterá, em qualquer dos casos, os sentidos e os significados a ela associados durante esse processo.
“É neste poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós enquanto espectador. Ser espectador não é a condição passiva que devêssemos transformar em actividade. É a nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos também enquanto espectadores que ligam constantemente o que vêem com aquilo que já viram e disseram, fizeram e sonharam. Não existe forma privilegiada, tanto quanto não existe ponto de partida privilegiado. Por todo o lado existem pontos de partida, cruzamentos, laços que nos permitem aprender algo de novo, se recusarmos, em primeiro lugar, a distância radical, em segundo lugar, a distribuição dos papéis e, em terceiro lugar, as fronteiras entre os territórios”[7]. É neste sentido que as instalações de Carla Filipe se apresentam no limbo da informalidade, sem privilégios de qualquer espécie, quer sejam artísticos ou sociais, aceitando e desenvolvendo inclusive a partilha de lugares e territórios que fundem a arte e a vida num sentido crítico, mas actuante apenas na medida da pluralidade assegurada pelas interpretações de cada um dos espectadores. Voltamos assim a Jacques Rancière, quando este nos assegura que “os artistas, como os investigadores, constroem a cena na qual a manifestação e o efeito das suas competências se expõem e se tornam incertos nos termos do novo idioma que traduz uma nova aventura intelectual. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Exige dos espectadores que desempenhem o papel de intérpretes activos, que elaborem a sua própria tradução para se apropriarem da ‘história’ e dela fazerem a sua própria história”[8]. E é nesta medida apenas que “uma comunidade emancipada é uma comunidade de contadores e de tradutores”, mesmo quando os papéis se invertem, como aconteceu com Carla Filipe, quando dialogou com o doador dos objectos associados ao barco “Liberdade” e traduziu para si, para o seu trabalho, a história que contada sobre esses documentos que inspiraram uma leitura sobre a memória e o passado. Quando esses objectos-documentos passaram a integrar o projecto expositivo de Carla Filipe no Museu do Neo-Realismo, começaram a “falar” a história que a artista quis contar a cada um dos espectadores, deixando a estes o exercício da sua própria tradução. Ou seja, tal como nos lembra Rancière, somos todos (artistas e espectadores) contadores e tradutores de signos e simbologias que nos rodeiam e que nos ajudam a (re)construir os sentidos que nos põem em contacto com o mundo e com a vida. O estatuto pretensamente privilegiado do artista (emissor, detentor da verdade) é aqui posto em causa, a favor de uma espécie de legitimação da função tradutora do receptor que todos acabamos por ser, em dado momento. Desse modo, a utilização de uma “documentalidade” no trabalho de Carla Filipe, traduz uma vontade de, por um lado, exigir a todos um maior esforço no contacto directo com elementos sígnicos que nos transportam a histórias de teor político e social concreto, mas que dependerão sempre, em última instância, das histórias e das convicções que cada um de nós transporta invariavelmente, porque constituintes da nossa singularidade existencial. Por outro, o “documento” – seja uma bandeira ou um chapéu de marinheiro – implica sempre uma vontade de reapresentar o passado como efeito de metonímia, deambulando pelos resquícios de “verdade” que nele podemos encontrar, mesmo que essa “verdade” prefigure uma diversidade constante, de acordo com a experiência de cada um dos espectadores que com ele se cruze.
Na verdade, Carla Filipe procura com o seu trabalho assumir um particular sentido do político, a partir de uma reflexividade que conjuga a criatividade e a receptividade emancipada através dos caminhos abertos pela “veracidade” documental. Tal como aponta Hito Steyerl acerca do “documentalismo no campo da arte”, há hoje uma “corrente documental mais reflexiva que vê nos seus próprios dispositivos ferramentas epistemológicas socialmente poderosas. Nestas obras não existe qualquer intenção de representar a verdade autêntica do político, mas sim de desafiar e mudar a ‘política de verdade’ na qual a sua representação se baseia. As próprias formações epistemológicas e visuais do documentário são, pois, definidas como funções do político”[9]. É neste sentido que a dimensão política da obra de Carla Filipe se afirma com eficácia no panorama da arte contemporânea realizada em Portugal. O “documento” gera uma estratégia de “documentalidade” de onde emana uma nova “veracidade”, mediante a reconfiguração do seu próprio processo de apresentação e comunicação com os espectadores. Nessa medida, quando a artista expõe no atrium do Museu a bandeira do barco-varino “Liberdade” – simplificando a seu aparato ao conjugá-la apenas com o chapéu de marinheiro do comandante dessa embarcação e ainda com os emblemas de clubes desportivos locais ao qual essa figura terá pertencido – está de algum modo a deixá-la “falar”, aceitando-a como documento primordial que nos remete para um passado, uma memória específica, neste caso, de teor político local e nacional, pois foi nessa embarcação, largada do cais de Vila Franca de Xira, que muitos opositores ao Estado Novo, ligados maioritariamente ao Partido Comunista Português (como Álvaro Cunhal, Alves Redol, Fernando Lopes-Graça, ou Bento de Jesus Caraça, entre muitos outros), realizaram alguns “passeios culturais” ao longo do rio Tejo, onde se reuniam e confraternizavam, partilhando aí, na liberdade das águas do Tejo, experiências de acção política clandestina, num tempo em que a liberdade de expressão em Portugal se reduzia ao apoio explicito à “situação” perpetuada pelo regime vigente. Por isso, convocar essa bandeira, revelando as marcas da sua antiguidade, significa recuperar um documento real no intuito de que ele “fale” por si próprio, como testemunho presencial de um tempo passado, ao projectar de imediato imagens de uma acção e de uma memória que tiveram consequências de carácter político e social junto do movimento oposicionista de meados do século XX. Enquanto objecto que desencadeia uma narrativa associada à memória de um tempo politizado pelas circunstâncias de oposição a um regime ditatorial e opressor, essa bandeira realiza a sua função como documento e rememoração, perdida que está há muito a sua função original de sinalização marítima e identificação no espaço de navegação. A “documentalidade” que deste modo instaura um novo e particular jogo de interpretação, permite-nos associar ao trabalho de Carla Filipe uma centelha de “verdade”, ainda assim instável e que nos mantém vigilantes perante a hipótese de uma “verdade” maior, pois é na própria precariedade material e na simplificação dos processos expositivos que a artista nos torna a todos mais conscientes de que tudo não passa de um exercício de interpretação e conflito entre sujeitos, valores, temporalidades e, por fim, de significados.


[1] Cf. Susan Sontag, Contra a interpretação e outros ensaios, (1964). (trad. port.), Lisboa, Gótica, 2004.
[2] Sobre esta alteração de valores e a sua relação com a produção artística cf. Hal Foster, The Return of the Real, The MIT Press, Cambridge, Masschussets, 1996.
[3] Sobre esta questão cf. Hito Steyerl, “Política da verdade: o documentalismo no campo da arte”, in Propostas da Arte Portuguesa. Posição: 2007, (ed. Miguel von Hafe Pérez), Colecção de Arte Contemporânea Público-Serralves, 2007, pp. 147 a 149.
[4] Idem., p. 147.
[5] Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle, Paris, Les presses du réel, 2001, pp. 47-48.
[6] Jacques Rancière, O espectador emancipado, (2008), (trad. port. José Miranda Justo), Lisboa, Orfeu Negro, pp. 27 e 28.
[7] Idem., p. 28.
[8] Idem., p. 35.
[9] Hito Steyerl, op. cit., p. 148.



nota: texto para a exposição "O Povo reunido jamais será-representações gráficas", 2010, Museu do Neo-Realismo










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A tradução de uma inquietude
É um espaço estranho e maravilhoso o ar é seco, quente e insípido - A actual exposição de Carla Filipe (Aveiro, 1973), apresentada na Kunsthalle Lissabon, inscreve-se numa linha de acção levada a cabo pela artista, em que os gestos enunciam o seu discurso. Situamos neste mesmo horizonte, os seus trabalhos que se expressam através de um teor performativo e/ou de interferência nos lugares, normalmente realizados pela artista em espaços expositivos alternativos como no Espaço Campanhã These things take time (2009), Zona de Estar (2004) ou Não é uma performance é uma necessidade (2003), ambos apresentados no Salão Olímpico, no Porto. O seu discurso está fortemente enraizado num pensamento que não define fronteiras entre linguagem, escrita e desenho. No entanto, diríamos que é o falar o princípio mais balizado pela artista, o contextualizar e o localizar da obra, num referente à sua vida, no seu entendimento do Mundo. Ou por outras palavras, o trabalho posiciona a artista no Mundo. Por via de um inventariar intenso entre os pares: desenho/linguagem; grafismo/época; arrumações/comunidade; acções/tradução – a artista define um percurso na procura desse lugar identitário que surge de brechas, de ajustes ou dos rodeios de uma ideia de intraduzibilidade. É em torno desta resistência que a sua prática se desdobra. Neste momento, Carla Filipe reside entre as cidades do Porto e Londres. A ideia de tradução toma a forma de um sintoma que inclui esta variável, na sua vida, e que influi no seu discurso. No entanto, como é definido por Paul Ricoeur, em Sobre a Tradução (2004), “as línguas não são apenas diferentes pela forma como dividem o real, mas também pela forma de o recompor ao nível do discurso (...) é a este nível que o intraduzível se revela pela segunda vez inquietante; é não só a divisão do real, mas a relação do sentido com o referente: o que se diz na sua relação com aquilo acerca do qual se diz; as frases do mundo inteiro esvoaçam entre os homens como borboletas inacessíveis. (...) E os textos, por seu turno, fazem parte de conjuntos culturais através dos quais se exprimem visões do mundo diferentes.” A experiência de uma cidade é indissociável da construção da linguagem, e por sua vez a expressão plástica desta experiência (ou necessidade) perfaz um triângulo que se sobrepõe ao descrito por Ricoeur. Cada cidade tem um idioma, a língua é a reconstituída por cada um, a sua expressão é texto ou tradução. A tradução de uma inquietude é o que nos sugere a proposta do momento-deriva marcado por Carla Filipe no mapa de Lisboa. O experienciar de um espaço íntimo que foi feito aberto à rua: uma passagem, uma arcada, um abrigo; o chão deste espaço privilegiado, delimitado, da experiência é assente em cimento, devolvendo-nos à cidade em forma de fragmento - Precarious, Escape, Fascination.
FAZENDA, Maria do Mar - "A tradução de uma inquietude". Revista L+Arte nº... 2010


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Na arte de Carla Filipe o acaso é um corpo
Experimentação, pesquisa, acaso, desenho figurativo, espaços exteriores, escrita. Com estas palavras nos abeiramos da arte de Carla Filipe, artista que vai estar na Manifesta 8, em Múrcia, Espanha. E que até 10 de Abril, em Lisboa, transforma uma exposição numa experiência física.

O Kunsthalle Lissabon, na Rua Rosa Araújo, em Lisboa, está diferente. Tem uma luz mansa e as portadas abertas. No interior, então, as alterações são mais fortes. Alguém cobriu o chão de cimento e sobre este desenhou um risco de alcatrão. Também escancarou as janelas, deixando ver o que estava escondido: um pátio, velho, abandonado no fundo do qual se descobrem dois buracos. É este desnudamento do (e no) lugar que tem o título “É um espaço estranho e maravilhoso, o ar é seco, quente e insípido / Precarious, escape, fascination”. E consiste na primeira exposição individual em Lisboa de Carla Filipe (Aveiro, 1973), artista com presença confirmada na próxima edição da Manifesta, na cidade espanhola de Murcia.
Mas não deixemos ainda o título. O que significam os dois nomes? Trata-se de uma tradução? Ou duas versões do mesmo título? E que relação apresentam com o espaço desnivelado pelo alcatrão, com o cheiro do cimento húmido, a corrente de ar? Para conseguir algumas respostas ou caminhos para estas, será necessário recuarmos a “Atalho”, trabalho apresentado por Carla Filipe no Espaço Campanhã, no Porto, em 2009. Tratava-se de uma peça que permitia o acesso às traseiras de um armazém por meio de uma simples rampa. As pessoas desciam ou não, com ou sem receio, colocando em acção o corpo. Ora, uma situação semelhante é trazida para o Kunsthalle Lissabon com a diferença que nos limitamos a olhar e a imaginar um atalho (uma escada) para o pátio.

A arte como necessidade
A obra de Carla Filipe existe nestas ramificações, nas ligações entre momentos e pesquisas, entre trabalhos que esperam o seu tempo, lentos à espera de uma decisão, de um clique. A ideia de exposição – ou disposição – no espaço é, aliás, fundamental no seu processo criativo, aspecto a que não será alheia a sua ligação à cena artística do surgida no Porto na década passada, à margem das galerias: expôs no espaço “Atmosferas” e ajudou a fundar em 2003 o Salão Olímpico (projecto de artes plásticas situado no salão de bilhares do café homónimo), com Eduardo Matos, Isabel Ribeiro, Renato Ferrão e Rui Ribeiro. À época a necessidade de fazer e mostrar arte era mais forte que as dificuldades ou a ausência de meios. E assim – movida por uma necessidade – começou o seu percurso. “Foi uma coisa espontânea. Não fazia sentido andar a fazer umas coisas no atelier ou ficcionar um portfólio e ir a galerias. Isso nunca me passou pela cabeça. Percebeu-se que as coisas podem acontecer se nós as criássemos. Era uma energia que estava acontecer”. Carla Filipe lembra outros projectos (“Caldeira”, “In Transit”, PêSSEGOpráSEMANA”), outras personalidades (José Maia ou João Sousa Cardoso,) mas rejeita uma romantização do passado: “ Há ideia de que os artistas que criaram estes espaços na cidade visavam uma espécie de vanguarda. Eu, que frequentei o meio e acompanhei alguns projectos de perto, nunca tive conhecimento de uma oposição à instituição e da criação de uma alternativa. Senti desde o início [do Salão Olímpico] um entusiasmo, como também um tipo de pressão, por parte de algumas pessoas que procuravam em nós uma espécie de revivalismo dos anos 70. O facto é que estes espaços eram espaços paralelos. Não uma alternativa”. E uma ideia de comunidade? “É tão viável como em qualquer outra sítio”, responde. “Em Lisboa existem artistas que agem em grupos compostos pelos seus amigos. Por exemplo, as oportunidades criadas pelo António Bolota têm consequências relevantes no panorama artístico. A iniciativa de um pode procriar a afluência de uma ideia de comunidade. Onde cada um desenvolve o seu trabalho”.
Carla Filipe não deixa de reconhecer a influência de um contexto físico específico – “Se o meu percurso tivesse sido outro, o trabalho tomaria com certeza outros rumos. As características dos espaços [independentes) foram, nesse sentido, muito importantes”. Daí, talvez, será legítimo mapear o interesse pela performance, que identificou a cena artística do Porto, ou por instalações que se aproximam da arte pública. Mencione-se, no primeiro caso, “Não é uma performance é uma necessidade”, no Salão Olímpico, em 2003, ou “Ao fim ao cabo o mundo é de todos e não é de ninguém II”, no Espaço Campanhã; quanto às intervenções no exterior, refira-se “Periurbano II - doação comunitária c/ cadeado", construção de uma horta em Coimbra, no âmbito da exposição “Busca Pólos”, em 2006, no Pavilhão de Portugal.

Da experimentação no espaço ao desenho
A rua, as hortas, os espaços públicos, os edifícios quase devolutos são locais de pesquisa, verdadeiros ateliers onde experimenta, intervém, constrói. Trata-se de uma forma de fazer (e um hábito) que depara, por vezes, com problemas quando se estende a outros locais, mais sujeitos a regras e normas, como a instituição de artes Spike Island, em Bristol. Aqui em 2008, por motivos de segurança, não pôde queimar, durante a montagem, a série de bandeiras da instalação “Centro”, peça que integrava a colectiva “Part-ilha”. Diz a artista: “Julgo que muitas experiências dos anos 70, encontrariam hoje dificuldades em acontecer. Mas temos de ter a capacidade de ignorarmos [os problemas] e concentrarmo-nos no trabalho…em vez de fazer exigências”. Aproveitamos a dica, pois sabemos que os anos 70 são um período importante para Carla Filipe. De que forma? Porquê “Representaram um multiplicidade de movimentações e de atitudes que me agradam. Os artistas tomavam um papel muito forte, escreviam textos de artista, criticas. São eles os primeiros a defenderem o vídeo como arte. Mas também gosto dos dadaístas, também gosto do presente”.
O desenho é outro suporte privilegiado. Encontramo-lo figurativo, em livros, cartazes, exposições, convivendo com textos, com a escrita, numa linguagem próxima de um registo diarístico, em que a ficção se confunde com o relato vero. O estilo quase sempre cru, moderadamente expressivo e lembra – até pela associação ao texto – Raymond Pettibon: “Sim, é verdade. Gosto [do trabalho] dele, mas confesso que os seus desenhos só me bateram mesmo no fundo quando os vi ao vivo em Novembro passado”. Outras referências ou afectos são Mário Botas, as pinturas de Joaquim Rodrigo (“o carácter narrativo sempre me interessou), os murais de Almada Negreiros, a literatura juvenil (“Querer avançar na leitura até chegar à página do desenho. Existe aqui a relação da escrita com o desenho) ou Ilya Kabakov.


A surpresa do acaso
Certos factores determinam, todavia, o uso do “medium”: “Quando o acto de desenhar já não me entusiasma ou surpreende, paro. É no desenho onde controlo melhor o erro, o acaso e o improviso. Por razões óbvias se tivesse um atelier para mim onde pudesse experimentar cimento, alcatrão, partir vidros, e cultivar plantas nas frechas do alcatrão também dominaria a sua potencialidade. Ora o meu trabalho vive muito da experimentação e da surpresa do acaso”.
É esta abordagem processual, na qual o sujeito é contaminado pelo contexto, que enforma os dois projectos que Carla Filipe prepara actualmente numa residência artística nos Acme Studios em Londres. Um será realizado em desenho a partir de registos e representações auto-biográficas, “cruzando a linguagem escrita com a visual numa aproximação à poesia visual e à linguagem tipográfica”, para dar conta da vivência e das experiências na cidade; o outro será um trabalho de campo em torno do universo dos caminhos-de-ferro, realidade e motivo autobiográfico que artista tem vindo a trabalhar noutros projectos e sobre o qual já construiu um arquivo de imagens.
Um conhecimento do local e do contexto feito de percursos e caminhadas, encontros entre textos e línguas (inglês e português), ramificações e re-ligações. Como a exposição no Kunsthalle e, muito provavelmente, o trabalho que vai desenvolver na exposição internacional Manifesta 8, em Múrcia, a convite do colectivo europeu tranzit.org

MARMELEIRA, José - "Na arte de Carla Filipe o acaso é um corpo". Jornal Público/Ípsilon, 19.03.10

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Exp. “Hospitalidade”
Bio
Carla Filipe (Requeixo, Aveiro, 1973) é mestre em Práticas Artísticas Contemporâneas pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. Membro fundador do Salão Olímpico (2003-2005) e do Projecto Apêndice (2006-2008), ambos no Porto, a sua actividade tem-se, assim, desdobrado por uma preocupação na divulgação de autores da sua geração e por uma criatividade que se tem manifestado essencialmente por via do desenho, ainda que a escultura e a instalação não sejam estanhas ao seu percurso.
Para o Hospital de S. João a artista concebeu cinco séries de desenhos, intituladas “A estrutura”, “A Espera e o Espaço - variações de densidade”, “Primeiro(s) Curativo(s)”, “Desdobrável: Acidente News”, “Palestra” e “S/ título”, num total de trinta e uma obras que se distribuem pela caixa de escadas central do edifício. Mesmo que alternadas na sua montagem final, as obras mantêm a sua autonomia, já que nenhum fio condutor narrativo se deverá procurar no interior de cada série. A artista serve-se de um modo muito peculiar de representar o mundo para criar situações onde a memória histórica factual se entrelaça com a ficção e uma história oral ouvida em testemunhos mais ou menos fidedignos e reproduzida sem preocupações documentais. Assim, nos seus desenhos, tanto nos podemos deparar com segmentos que lembram arranjos tipográficos jornalísticos, como representações enviesadas ou falsamente infantis de situações mais ou menos prováveis. A originalidade do seu projecto passa precisamente pelo modo como consegue transportar o espectador para um universo de credibilidade duvidosa, onde o trágico e o cómico se podem suceder a uma velocidade estonteante. Por outro lado, a sua especial predilecção por um registo vagamente auto-biográfico (onde o facto de ter crescido, por razões familiares, no seio do universo muito particular dos caminhos de ferro portugueses) costuma atirar o seu trabalho para uma dimensão falsamente nostálgica ao apropriar-se da linguagem escrita e visual dos almanaques da CP de há décadas atrás.


Miguel von Hafe Pérez, 2009




    @ andrécepeda



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Maio/ 2006 – “Na Sala”, Porto

Maio/ 2007 – “Contretype”, Bruxelas

Texto por Nuno Ramalho

obrigado pela conversa

Já assistimos num qualquer reality show às palavras sentenciadas em directo, ou não, num "confessionário". é um dispositivo semelhante que a Carla Filipe convoca no projecto obrigado pela conversa. durante uma hora, frente a uma câmara, a artista fala para alguém que adivinhamos presente mas não vemos – afinal, somos nós o interlocutor privilegiado – sobre um assunto que, em última instância, nos vai dizer directamente respeito... o espaço da acção é uma sala ou um quarto, onde se vê uma porta aberta como único ponto de fuga.
Não há aqui engodo algum: ao longo da duração da peça, sente-se que a artista não se abstrai totalmente da câmara, nem seria essa a sua intenção. na conversa informal que se seguiu à primeira exibição deste trabalho, alguém sugeria que ali havia necessariamente uma encenação, uma presença menos “natural” com gestos calculados. mas ainda hoje é altamente improvável que qualquer pessoa se comporte como se nada se passasse de estranho em frente a uma câmara. este trabalho não é sobre alguém "apanhado" por uma câmara de filmar. paradoxalmente, é no dia-a-dia (mais ou menos alheado das câmaras) que ocorrem as situações onde se espelha uma assimilação comportamental generalizada de tiques e parâmetros mediáticos.
Reforçando uma propriedade de artifício, que passa pela apresentação de uma personagem e não apenas uma pessoa, o plano da imagem que nos é dada a ver remete para a situação física do intérprete/ plateia, própria do imaginário do espaço cénico – ou seja, para o campo da representação.

Por afinidade, vem à memória a peça escrita por Jean Cocteau, a voz humana: uma conversa telefónica entre um homem e uma mulher, amantes, sendo que aos espectadores só é dado a conhecer o ‘monólogo’da personagem feminina.
Aqui também é uma mulher que está em discurso directo, quem sabe se no mesmo contexto (...) não há som, mas obviamente há linguagem.
As histórias que a Carla tem apresentado regularmente no seu trabalho (...) remetem para a sua experiência pessoal de forma mais ou menos velada, igualmente habitadas por personagens verídicas. Os impressionantes desenhos intrincados que compõem parte da sua produção artística sublinham – literalmente – a realidade de leitura de uma obra de arte e a possibilidade de explorar o nosso voyeurismo de espectador: são trabalhos onde se cruza o excesso da palavra com a sua condição primordial de desenho; onde a limpeza lógica não é bem-vinda e se avança aos solavancos.

Neste trabalho, essa palavra (aqui, verbalizada) foi fisicamente suprimida mas permanece como a peça essencial que provoca o imaginário do espectador. continua igualmente a ser explorada a questão da auto-representação – e aqui peço a quem ler este texto que faça uma pausa para efectivamente reflectir sobre essa expressão. parece-me mesmo que é disso que neste projecto se trata: ‘represento (isto) para mim, represento (aquilo) para os outros, o meu trabalho representa isto para mim, isto é o que o meu trabalho representa para os outros’. como sabemos, as próprias palavras podem ser saborosas, mas não são muito mais do que representações.

Para quem assiste a este vídeo há sempre o direito de assumir um lugar activo. somos impelidos com naturalidade para o acto violento que é precisamente tentar cobrir o discurso com as palavras que lá não encontramos. esse acto denota alguma frustração perante a ausência de produção de um significado, que legitimamente se espera resultante de um acto de comunicação; por aí também emerge a nossa vontade primária de sobrepormos o nosso discurso ao do outro.

Eliminar voluntariamente o som da fala, como acontece neste projecto, não será por si só uma renúncia a essa matéria, mas é uma pedra de toque eficaz: por exemplo, levou-me a pensar no que em última instância conduz alguém a um fazer voto de silêncio, ou no efeito que socialmente alguém produz ao falar pouco,  voluntária ou involuntariamente, ou nos sinais de conforto e desconforto de algumas conversas. enfim, não são necessariamente pontos de referência válidos para muitos, mas para mim são questões da ordem do banal – tão badalada nestes dias – em torno das quais não se encontra muita produção. No mundo que reconhecemos saturado também pelos sons, recusamo-nos a permitir que o silêncio seja de ouro, de facto. O silêncio atrapalha-nos, não é matéria do campo social, e no plano da intimidade é objecto de estranheza. é uma espécie de mal necessário.

Sobram-nos os gestos, e sobre eles não se pode dizer que sejam todos representações de algo. ao longo de uma hora de obrigado pela conversa podemos presenciar vários movimentos económicos, que não tem nada a ver com caprichos de espontaneidade ou vontade. São coisas que é preciso fazer segundo um cálculo mínimo biológico, de sobrevivência. respirar, parar de falar, olhar para o lado, a fragilidade ou irritação transparentes são elementos que se misturam de forma fluída com pausas dramáticas, o cabelo mexido compulsivamente, mais um cigarro fumado, o virar de costas e o desaparecer de “cena”.
Parece-me certo que nesta performance o comunicável é conduzido através da oralidade (tornada ineficaz) em direcção aos gestos, ou melhor, até à mais ampla linguagem de um corpo – a tal que muitas vezes nos desarma de palavras que a expliquem ou justifiquem. mais do que noutras alturas a expressão da Laurie Anderson, sobre a linguagem ser um vírus, faz sentido. É para aí, com mais ou menos divergência, que a concentração do espectador também se dirige. Os gestos que vemos, mesmo se ensaiados a frio diante da câmara de filmar, não se transformam em caricaturas, nem tampouco resultam de uma pesquisa estética com uma finalidade coreográfica. são sinais de diferente intensidade e acompanham os momentos de maior ou menor inscrição que conseguimos ler nestas imagens silenciadas.

Quanto é que nessa situação se produz de apagamento ou enriquecimento do próprio, como somos moldados pelo uso da palavra foram para mim ideias levantadas por este projecto. outras questões surgiram necessariamente, tais como pensar sobre quais as condições de representação inscritas no indivíduo; na comunicação deste com outros; o que estrutura e separa uma conversa, de uma entrevista, confissão, discussão, etc.

(...)




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