O GRUPO RAR VISTO POR CARLA FILIPE



Carla Filipe é uma das artistas mais singulares do actual panorama artístico português. Esta asserção não é partilhada por uma parte significativa da comunidade artística nacional, exactamente porque o seu trabalho se movimenta numa área onde as fronteiras entre o convencionalmente apelidado por alta e cultura popular se aproximam inexoravelmente. Distante do formalismo conveniente que percorre despudoradamente uma parte importante da criação contemporânea, a artista tem vindo a desenvolver uma prática ancorada no desenho, onde reminiscências várias sustentam projectos visual e conceptualmente sólidos. Quer se trate de obras que revisitam um passado familiar, como de pesquisas em torno das indiossincracias sociais e políticas do nosso país, a autora dissimula uma falsa inocência nas suas abordagens que não deixa de sublinhar o carácter ao mesmo tempo cómico e trágico das propostas em causa.
Ainda que tmbém trabalhe directamente no espaço e em obras tridimensionais, o desenho, como disse, é o seu terreno mais familiar. Ai cruza-se a escrita, numa espécie de fluxo de consciência ininterrupto, e o desenho propriamente dito. Próximo das linguagens da banda desenhada underground, dos cadernos de escola infantis ou de diários juvenis, nestes trabalhos Carla Filipe consegue manter uma voz autoral própria, exactamente na medida em que descontrói paulatinamente paradigmas de originalidade e proficiência artísticas. Era esta, então, uma escolha relativamente óbvia para um trabalho como o que agora se apresenta: na verdade, ao convidar artistas a reflectirem plasticamente sobre o seu universo empresarial, a RAR vê-se agora representada numa série de obras se desdobram memórias de visitas da artista proporcionam e elucubrações várias sobre economia ou simplesmente sobre temas associáveis às áreas de intervenção do grupo: agricultura, turismo, etc…
Esta compulsão diarística, que por vezes se aproxima de uma espécie de heráldica infantil, como é o caso do desenho que reproduz a administração da empresa, pode estender-se a eventos que foram proporcionados pelas visitas anteriormente referidas, nomeadamente provas de chocolate em casa de amigos ou trocas de e-mails com companheiras distantes ( nesse desenho, lê-se : “ no money stay at home and voyage by internet” , naquele que é um dos métodos da artista desencadear uma recepção desviante da aparente simplicidade de conteúdos, isto é, tornando a linguagem verbal tão aparentemente grosseira quanto a visual), ou ainda, naquele que será um dos elementos mais surpreendentes da proposta deste ano, no vinil que reproduz sons retirados das fábricas.
Um dos factores que sublinha a eficácia deste modus operandi advém exactamente desta dimensão processual, onde o assunto e o respectivo tratamento plástico colapsam numa dimensão própria que se poderia designar por arqueologia do presente.
Miguel von Hafe Pérez, 2007






-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------