DA EMÊRGENCIA DO DESENHO NO PORTO
Aida Castro
2007- 05-12 , Arte Capital

Entre conversas informais, e textos publicados, tem sido consensual que o desenho é um dos meios de actuação e reflexão predominante no trabalho desenvolvido pela recente geração de artistas do Porto. No texto “Montes de Verdade”, publicado no livro sobre o “Salão Olímpico”, Ricardo Nicolau reflecte (...) do contexto artístico no Porto, é impossível não notar a grande presença da performance e do desenho e a importância do seu papel no corpo de trabalho de uma grande quantidade de artistas—independentemente de os utilizarem regularmente, apenas, ou, pelo contrário, de forma quase exclusiva. Uma observação que chegou a ser sublinhada por João Fernandes, Director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no discurso do lançamento do livro citado realizado no mês de Abril no café Salão Olímpico. O actual investimento no desenho - não esqueçamos que durante o mês de Abril e Maio inauguraram uns quantos eventos relacionados nas instituições e espaços independentes do contexto artístico do Porto - vem de facto confirmar este levantamento, mas digamos que é, ainda assim, relativo a um intervalo, ou a um grupo de artistas cujas manifestações, de facto, têm vindo a ser mais ou menos visíveis e reconhecidas. O resto, que parece de repente deslocado, e determinado a qualquer coisa como “novos media”, projectos de som, vídeo, design, e que se movem noutro tipo de operacionalidade, confere uma abertura deste contexto e desta averiguação que poderá ter, no mínimo, um mesmo grau de eficácia e seriedade artística. Bastaria distinguir projectos em permanência como a Virose, Soopa, outros colectivos como a Ástato editora, outros artistas como Cristina Mateus, Miguel Leal, Fernando José Pereira, João Sousa Cardoso, António Preto e Daniela Paes Leão, entre outros.
Mas, neste texto dedicado ao desenho, pretende-se reunir algumas apresentações nas quais acredito ser possível pensar uma certa forma “activista do desenho”, no sentido em que a sua opção desempenha uma determinada acção que importa sublinhar e que parece correr o risco da invisibilidade se não se pronunciar como acontecimento. Dentro das exposições que apresentam desenho, Dan Perjovschi na Culturgest que terminou a 5 de Maio, Jorge Queiroz e Silvia Bächli no Museu de Serralves, destacam-se as mais recentes intervenções de Carla Filipe no IN.TRANSIT, um projecto comissariado pelo artista Paulo Mendes no edifício “Artes em Partes” da Rua Miguel Bombarda; “Grande Prémio de Desenho”, organizado pelos colectivos “Senhorio” e “Mula”; e ainda “Homem Selvagem” dedicada à ilustração, na Galeria Cozinha da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto organizada pelos professores Julio Dolbeth e Rui Vitorino Santos.

Da tertúlia do “Grande Prémio de Desenho”, programada com o irónico título “A Táctica do Quadrado! Estilo & Substância”, anota-se alguns pontos que interessa revelar. Apesar de nem todos os artistas participantes terem estado presentes, e, se não houver engano, contando apenas com duas presenças exteriores ao concurso, focaram-se três principais pontos que importa reunir: O primeiro ponto refere a importância da formação ao nível da disciplina do desenho administrado no curso da Faculdade de Belas Artes do Porto e a sua influência nas opções artísticas mais emergentes, sendo que a maioria dos convocados a concurso são alunos e ex-alunos desta escola, tirando alguns casos provenientes de Lisboa como André Lemos, Bruno Borges, e Mauro Cerqueira de Guimarães. O segundo ponto prende-se com a acessibilidade do desenho, pois sendo uma prática paralela à escrita exige no mínimo uma folha e um lápis para concretizar um raciocínio, e assim justifica-se como um meio sem grande exigência de custos materiais no desempenho da sua eficácia. Num terceiro ponto, de um modo mais fugaz, tentou-se discutir o virtuosismo que persegue esta prática. Se, por um lado, o virtuosismo ligado ao domínio técnico é compreensível se não for um fim, por outro há uma necessidade de desvirtuação. Os mais emblemáticos desenhos que se inserem nesta discussão são, pelo primeiro lado, dos autores Nuno Sousa, Carlos Pinheiro, Isabel Carvalho, Marco Mendes, Arlindo Silva, Miguel Carneiro, Francisco Roldão, Bruno Santos Silva e Joana da Conceição (1). Todos apresentam formalmente o desenho virtuoso, aquilo que na prática do desenho se destaca mais superficialmente, mas subvertido e moderado pelos conteúdos. O trabalho de Carlos Pinheiro e Nuno Sousa tem sido muito forte na ironização do talento e da qualidade de mestria, enquanto o da artista Isabel Carvalho faz uso para apresentar uma certa deformação catita-visceral. O trabalho de Marco Mendes e Arlindo Silva que se prende na representação de uma realidade íntima, na maior parte dos exemplos, notoriamente imprópria e desviada, mas apresentada sem pudor. E ainda o trabalho de Miguel Carneiro, o vencedor desta primeira edição, que se constrói quase sempre como projecto de desenho, e muito próximo de um processo de investigação, reúne referências desde as mais triviais às mais eruditas. Neste caso uma homenagem ao grupo de Chicago “Hairy Who” consegue actualizar o ênfase crítico, absurdo e ambíguo do desenho no contexto do prémio. “Eu faço o que quero com o meu cabelo”, slogan mediático de um gel, é premeditadamente escrito pelos caracóis de um cabelo feminino. No segundo lado os protagonistas mais evidentes serão Mauro Cerqueira, Carla Cruz, André Sousa, Pedro Nora, João Marrucho, Mónica Faria e Carla Filipe. Saliento ainda duas situações evidentemente politizadas, e muito bem conseguidas, no desenho apresentado por Inês Azevedo e Tatiana Santos. O desenho em quase todos os casos citados, e na generalidade dos participantes, é uma ferramenta de acção conceptual que carrega um ímpeto performativo, quer dizer de acção, permitindo verificar uma emergência que forçosamente reúne um certo número de artistas. Devo apenas deixar como nota que a votação foi um círculo hermético, ou seja, os únicos que tiveram direito a voto foram os participantes, e o prémio foi a própria colecção constituída a propósito do concurso — “The Winner Takes it All”. O mecanismo de reconhecimento de um vencedor deste circuito que se quis fechado, e provavelmente metáfora, consciente e talvez irónica, dessa emergência do desenho. Que, sendo provocatório, pode correr o perigo de querer representar e acentuar uma certa geração de artistas do Porto que, apesar do trabalho persistente, não se pode fechar numa única forma operativa.
A exposição individual de desenho, “Pesquisa no campo DESERTAR antes que ganhe um cancro” de Carla Filipe, patente no espaço IN.TRANSIT até 26 de Maio (2), pertence a uma prática obsessiva do desenho que regista a decisão de partir, explorar e tornar pragmáticas necessidades reais. A sala dividida em três momentos de apresentação (entre paredes e uma mesa estendida na sala que parece uma outra parede na horizontal) geografam três viagens: Roterdão 04, Londres 05 e Porto-Paris-Berlin-Kassel-Frankfurt 03. No conjunto dos aproximadamente 100 desenhos a artista reconstrói uma memória, necessariamente narrativa, dessas passagens através de reconhecimentos locais, experiências pessoais, assim como, recuerdos visuais de jornais, flyers de todo o tipo, cartazes, revistas, excluindo o acto de fotografar como auxiliar de memória subjectiva. A apreciação, e a transformação dos conteúdos no desenho reside na experiência pessoal real e na experiência visual local que trouxe consigo, e não na experiência visual subjectiva retida na memória fotográfica. Aqui a subjectividade e a memória são apenas da responsabilidade do desenho, sem ser uma exposição de um “caderno de bordo” mas antes uma reorganização pós-viagem. E por isso aqueles desenhos tanto se assemelham a páginas web, uma das plataformas favoritas actuais para a reorganização, a difusão e selecção autoral de informação. Não se sabe, ou não interessa saber, se de facto as viagens foram reais ou fictícias, existem alguns elementos que vão conferindo ora a veracidade, ora a falsidade dos factos. Sabe-se de uma necessidade de desertar, de eleger um lugar possível em contrapartida ao presente. Para o “Grande Prémio de Desenho” Carla Filipe desenhou um mapa, não científico, dos artistas que vivem e viveram na baixa portuense, e tal como esse mapa, esta exposição detecta lugares de acção e de interesse que determinam vivências. Muitas das vezes vivências visuais. A concomitância da escrita e do desenho vem salientar ainda mais a apresentação das páginas web, a informação está em cada desenho e obriga o olhar a distrair-se de folha em folha.


Muitos dos trabalhos artísticos apresentados nestes eventos adequam um modo fortemente formal, quase visceral, no desenho. A exposição “Homem Selvagem” (3), uma reunião de autores de ilustração nacionais e estrangeiros, vem acentuar ainda mais esta ideia. A maioria dos participantes apoiaram-se na concepção mais trivial, de um homem que se distancia da civilização na sua qualidade feroz, esquisito, peludo, King-Kong. De entre as poucas propostas menos literais, destaco o trabalho de Marco Mendes por oferecer uma relação mais ambígua com o tema da exposição ao traduzir eficazmente a abertura entre o homem e o animal na sociedade contemporânea. As imagens são na sua maioria densas, estridentes e muito apelativas. O texto de onde partiu a apresentação temática da exposição, de Maria José Goulão, chega a ser tão sólido e interessante que esperar-se-ia uma reflexão formal menos óbvia por parte dos autores. Como evento que celebra a ilustração, e que pretende prolongar no sítio académico essa actuação, revela uma importante iniciativa no escasso panorama expositivo relativamente a esta área.


Entre muitas histerias, excessos, deixo apenas como abertura a hipótese que nos dá Silvia Bächli: Aquilo que terminantemente rejeito é arte que é apenas virtuosa: conseguida, mas oca e vazia na sua execução. Esta perícia superficial sabe demasiado à partida. E não gosto de pathos ou da ruminação rasteira das realidades mediáticas, sexo e crime. Manchetes e notícias do dia também me interessam pouco. Da mesma forma, também não me agrada confrontar-me com o kitsch através da arte. A arte não me deve submergir fisicamente. O conteúdo representado deve resistir ao grito expressivo (4).

NOTAS
(1) Alguns dos desenhos podem ser consultados em:www.osgajosdamula.blogspot.com
(2) Mais informação em: www.paulomendes.blogspot.com
(3) www.cozinha.fba.up.pt/homemselvagem
(4) Entrevista por Hans Rudolf Reust a Silvia Bächli








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