IN  .TRANSIT # 29
texto sobre_CARLA FILIPE_DESERTAR
por_GISELA LEAL

A postura que adoptamos quando viajamos depende do olhar com que partimos e, num segundo momento, daquilo que encontramos. O acto da partida pode ser impulsionado pelo desejo de encontrar a diferença, por pura curiosidade vernácula, pela procura de marcas de uma história universal onde, por afinidade, se encontrem laivos da própria identidade ou apenas por uma necessidade visceral de mudar de lugar. Em qualquer dos casos, pensamos em sair, deixar um lugar para ir de encontro a outro. Não falamos aqui de um acto de abandono da pátria em busca de exílio ou do renegar de um contexto familiar, social ou político. No entanto, num ponto podem cruzar-se as motivações da partida com as deste "desertar", de Carla Filipe: a exploração de possibilidades.


A viagem pode até ser feita no papel, como nos ensinam obras fundamentais da literatura mundial como a Odisseia, a Divina Comédia, Os Lusíadas, o Dom Quixote ou a própria Bíblia. Na tradição portuguesa, a literatura de viagem tem particular importância se pensarmos que os seus antecedentes são os registos dos navegadores na época dos descobrimentos. Procurando fixar rotas, características da costa ou atmosféricas que permitissem a repetição da façanha, aos diários de bordo (cuja função seria, por isso, puramente pragmática) foram sendo associados elementos de carácter narrativo que introduzem desde logo a subjectividade que revela a relação do narrador com o observado.
Hoje, como então, a primeira relação criada com o novo espaço é visual, as primeiras impressões são recebidas pelo olhar, o primeiro lugar habitado é o mapa. As representações surgem pela primeira vez aí, desde logo assentes em convenções. Mas cedo a relação com o espaço assume contornos de transgressão: descobrem-se direcções, indicações, sugestões, que apenas os passos que acompanham o olhar podem perseguir.
Por aqui segue o viajante – o turista, o curioso, o investigador ou o artista. E se quisermos falar do olhar do artista, veremos como pode transfigurar o seu objecto de observação, de modo declaradamente propositado. E o propósito poderá até ser o de resguardar um outro espaço de liberdade e, simultaneamente, de reencontro: a criação.


De uma experiência de ida a identidade pode, de facto, regressar transfigurada. Carla Filipe remete essa transfiguração para o seu trabalho – os desenhos.
E o que a artista evidencia nesta primeira exposição da nova série de trabalhos resultantes de viagens a cidades europeias é precisamente uma atenção do olhar e um cuidado na recolha de múltiplas referências que lhe permitem a posteriori construir novas representações (particulares, críticas, sensíveis, impressivas, relacionais, irónicas e até cómicas), derivadas e, ao mesmo tempo, distanciadas das retidas nos lugares de destino.



Trabalhar sobre representações encontradas, analisando-as, manipulando-as e acrescentando-lhes a diferença é, afinal, uma forma de digerir a informação. E a artista trabalha-a recorrendo a várias fontes: a que se impõe por meio da divulgação turística, especificamente concebida para atrair o interesse do forasteiro, e a que resulta da atenção devotada a elementos da cultura local (os jornais, a organização social, o urbanismo, o protagonismo da arte). Num outro plano, emergem as experiências pessoais adquiridas in loco – a descoberta casual do sítio, em Londres, onde Jack o Estripador angariava as suas vítimas ou a queda caricata à porta da White Cube Gallery frente a Paula Rego.


As referências aos elementos que servem de ponto de partida aos desenhos resultam no cruzamento entre referenciais pessoais e referenciais locais, cuidadosamente reorganizados.
São os próprios elementos constitutivos dos desenhos a criar as dinâmicas de percepção e identificação, mas dentro de um processo de recontextualização assente na manipulação, distorção, reinterpretação, apropriação de ícones, introdução de elementos estranhos ao local, à situação, ao personagem ou à estória de partida.
Processo minucioso este que revela em pormenores as impressões e a reflexão da artista, numa intervenção feita de pequenas narrativas e figurações (por meio do desenho ou do texto), agrupadas em três blocos/ viagens. Em cada um deles se percebe uma relação particular com o lugar de destino. A possibilidade terá sido sempre, num ou noutro momento, desertar.

GL, abril, 2007






---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------