A tradução de uma inquietude
É um espaço estranho e maravilhoso o ar é seco, quente e insípido - A actual exposição de Carla Filipe (Aveiro, 1973), apresentada na Kunsthalle Lissabon, inscreve-se numa linha de acção levada a cabo pela artista, em que os gestos enunciam o seu discurso. Situamos neste mesmo horizonte, os seus trabalhos que se expressam através de um teor performativo e/ou de interferência nos lugares, normalmente realizados pela artista em espaços expositivos alternativos como no Espaço Campanhã These things take time (2009), Zona de Estar (2004) ou Não é uma performance é uma necessidade (2003), ambos apresentados no Salão Olímpico, no Porto. O seu discurso está fortemente enraizado num pensamento que não define fronteiras entre linguagem, escrita e desenho. No entanto, diríamos que é o falar o princípio mais balizado pela artista, o contextualizar e o localizar da obra, num referente à sua vida, no seu entendimento do Mundo. Ou por outras palavras, o trabalho posiciona a artista no Mundo. Por via de um inventariar intenso entre os pares: desenho/linguagem; grafismo/época; arrumações/comunidade; acções/tradução – a artista define um percurso na procura desse lugar identitário que surge de brechas, de ajustes ou dos rodeios de uma ideia de intraduzibilidade. É em torno desta resistência que a sua prática se desdobra. Neste momento, Carla Filipe reside entre as cidades do Porto e Londres. A ideia de tradução toma a forma de um sintoma que inclui esta variável, na sua vida, e que influi no seu discurso. No entanto, como é definido por Paul Ricoeur, em Sobre a Tradução (2004), “as línguas não são apenas diferentes pela forma como dividem o real, mas também pela forma de o recompor ao nível do discurso (...) é a este nível que o intraduzível se revela pela segunda vez inquietante; é não só a divisão do real, mas a relação do sentido com o referente: o que se diz na sua relação com aquilo acerca do qual se diz; as frases do mundo inteiro esvoaçam entre os homens como borboletas inacessíveis. (...) E os textos, por seu turno, fazem parte de conjuntos culturais através dos quais se exprimem visões do mundo diferentes.” A experiência de uma cidade é indissociável da construção da linguagem, e por sua vez a expressão plástica desta experiência (ou necessidade) perfaz um triângulo que se sobrepõe ao descrito por Ricoeur. Cada cidade tem um idioma, a língua é a reconstituída por cada um, a sua expressão é texto ou tradução. A tradução de uma inquietude é o que nos sugere a proposta do momento-deriva marcado por Carla Filipe no mapa de Lisboa. O experienciar de um espaço íntimo que foi feito aberto à rua: uma passagem, uma arcada, um abrigo; o chão deste espaço privilegiado, delimitado, da experiência é assente em cimento, devolvendo-nos à cidade em forma de fragmento - Precarious, Escape, Fascination.
FAZENDA, Maria do Mar - "A tradução de uma inquietude". Revista L+Arte nº... 2010


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