da exp. " O Povo reunido jamais será - representações gráficas " no Museu do Neo - Realimo 











Arte, “documentalidade” e interpretação
David Santos

“Não existem factos, apenas interpretações”
F. Nietzsche

Nos anos 60, Susan Sontag expressava a sua revolta ao publicar “Contra a Interpretação”, um conjunto de ensaios que procurava contrariar o efeito aparentemente asfixiante que caracterizava o pluralismo interpretativo da obra de arte[1]. Reivindicava-se aí um regresso à experiência directa com a obra, diminuindo os efeitos nocivos de uma interpretação sistémica e infinita. Apesar de tudo, é hoje difícil aceitar que a interpretação possua um projecto de anulação dos valores intrínsecos da obra de arte. Da teoria cultural à análise literária e artística, o universo interpretativo representa com efeito um jogo dinâmico e estonteante que, mais do que empobrecer, confere ao objecto de arte um prolongamento de vida e significados que o mantém actuante perante o receptor. Por outro lado, a diversidade inerente ao paradigma interpretativo pós-moderno é, em parte, responsável pelo descrédito das verdades transcendentes e a ascensão dos efeitos imanentes[2]. Isto é, o particular passou a ganhar terreno perante as teorias gerais e as especificidades ocuparam aos poucos o lugar das generalidades abstractas. Os contextos e a sua observação passaram assim a influir de um modo decisivo em quase todos os domínios da acção humana contemporânea.
Há mais de dez anos que Carla Filipe (Aveiro, 1973) produz arte como resultado de um envolvimento directo com o contexto da sua exibição. As exposições desta artista não assentam na apresentação de um conjunto de obras preconcebidas e depois adaptadas ao “white cube” da galeria, mas no exercício dialogante entre conceitos e práticas processuais que a conduzem a um determinado resultado. O sentido “site-specific” das suas propostas artísticas converte assim cada exposição num cenário aberto às circunstâncias e ao seu potencial crítico, acentuando, a partir de uma cuidada reconfiguração de carácter documental, um jogo de leitura política e social que transforma não apenas os objectos de arte ou os espaços da sua apresentação, como ainda a sua relação com a cultura e a geografia locais.
Desse modo, Carla Filipe realiza no Museu do Neo-Realismo "O Povo reunido, jamais será – representações gráficas" (2009-10), exposição onde se cruza o grafismo de cartazes reivindicativos, acentuando a sua transformação formal e identitária, com a atmosfera contestatária das colectividades locais de meados do século XX. Rasurando as palavras desses cartazes, a artista recorre sobretudo a cores e formas que se insinuam enquanto memória de um gesto de protesto cada vez mais frágil e inconsequente, disseminado hoje por outros meios de contacto informacional, como as “redes sociais”, os “blogs” e lógica de actuação promovida por uma internet cada vez mais omnipresente. Por outro lado, podemos ver como o mítico barco-varino vila-franquense “Liberdade” (o original), levou Carla Filipe a assumir uma posição de partilha e interpretação sobre os valores dessa memória, recorrendo a elementos documentais recentemente doados ao Museu. Entre a etnografia e os modelos gráficos de algumas palavras de ordem, Carla Filipe trabalha aqui um registo crítico que concilia eficazmente a arte e a “documentalidade” do real[3].
Na verdade, o uso do “documento” na prática artística contemporânea propagou-se extraordinariamente e de um modo paralelo “à expansão do âmbito da produção artística, que na última década passou a considerar os fenómenos políticos e sociais um campo de pesquisa privilegiado”[4]. Porém, livre dos constrangimentos ideológicos que colocam a arte ao serviço de um mensagem política, Carla Filipe aprofunda uma prática artística de envolvimento vital entre o autor, a obra e o observador, aproximando-se desse modo da “estética relacional” defendida por Nicolas Bourriaud. Tal como nas palavras do crítico de arte e curador francês, a obra de arte apresenta-se de uma maneira geral, mas também em Carla Filipe, acrescentamos nós, “como um interstício social no interior do qual estas experiências, estas novas ‘possibilidades de vida’, se revelam possíveis: parece mais urgente inventar relações possíveis com os vizinhos no presente do que fazer cantar os amanhãs. […] Os contratos estéticos, como os contratos sociais, são tidos por aquilo que são: ninguém pretende instalar a idade de ouro sobre a Terra, e nós contentar-nos-emos como voluntários em criar os modus vivendi que permitam relações sociais mais justas, modos de vida mais densos, combinações de existência múltiplas e fecundas. Do mesmo modo, a arte não procura mais figurar utopias, mas construir espaços concretos”[5]. O apurado sentido sobre o efeito parcelar de toda e qualquer proposta artística contemporânea, permite a Carla Filipe actuar numa dimensão auto-consciente acerca do alcance ou dos limites da sua acção. Por outro lado, o observador-espectador não é aqui um ser passivo que deve ser instruído – ou activado – em direcção a uma “verdade” metafísica, mas alguém que constrói sempre a sua interpretação, a partir de pequenos dados construídos pelo artista em torno de uma “documentalidade” experimental, e só desse modo se torna activo ou, necessariamente, emancipado. O espectador é, nesta medida, um elemento a quem se exige uma interpretação, assegurando, contudo, que esta será sempre mais rica ou elaborada em função da experiência de cada um dos receptores da obra de arte. Recordemos a este propósito as palavras de Jacques Rancière, “[…] num teatro, exactamente como num museu, numa escola ou na rua, nada existe que não sejam indivíduos que traçam o seu próprio caminho pelo meio da floresta das coisas, dos actos e dos signos que lhes surgem pela frente ou que os rodeiam. O poder comum aos espectadores não tem a ver com a respectiva qualidade de membros de um corpo colectivo ou com qualquer forma específica de interactividade. É antes o poder que cada um ou cada uma tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de ligar o que percebe à aventura intelectual singular que os torna semelhantes a todos os outros na medida em que essa aventura singular não se assemelha a nenhuma outra. Este poder comum da igualdade das inteligências liga os indivíduos entre si, fá-los proceder à troca das suas actividades intelectuais, ao mesmo tempo que os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de todos para traçar o seu caminho próprio. O que as nossas ‘performances’ comprovam – quer se trate de ensinar ou de representar, de falar, de escrever, de fazer arte ou de vê-la – não é a nossa participação num poder encarnado na comunidade. É, sim, a capacidade dos anónimos, a capacidade que faz com que cada um(a) seja igual a todos(as) os(as) outros(as). Essa capacidade exerce-se através de distâncias irredutíveis, exerce-se por intermédio de um jogo imprevisível de associações e dissociações”[6].
Este jogo intenso e incontornável é, afinal, promovido tendo em conta o processo transformador da comunicação. Ou seja, o envio e a recepção de uma mensagem resultam sempre, deste modo, na transfiguração da sua hipotética essência, ou “verdade” aparente, pois o trânsito da sua forma reconverterá, em qualquer dos casos, os sentidos e os significados a ela associados durante esse processo.
“É neste poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós enquanto espectador. Ser espectador não é a condição passiva que devêssemos transformar em actividade. É a nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos também enquanto espectadores que ligam constantemente o que vêem com aquilo que já viram e disseram, fizeram e sonharam. Não existe forma privilegiada, tanto quanto não existe ponto de partida privilegiado. Por todo o lado existem pontos de partida, cruzamentos, laços que nos permitem aprender algo de novo, se recusarmos, em primeiro lugar, a distância radical, em segundo lugar, a distribuição dos papéis e, em terceiro lugar, as fronteiras entre os territórios”[7]. É neste sentido que as instalações de Carla Filipe se apresentam no limbo da informalidade, sem privilégios de qualquer espécie, quer sejam artísticos ou sociais, aceitando e desenvolvendo inclusive a partilha de lugares e territórios que fundem a arte e a vida num sentido crítico, mas actuante apenas na medida da pluralidade assegurada pelas interpretações de cada um dos espectadores. Voltamos assim a Jacques Rancière, quando este nos assegura que “os artistas, como os investigadores, constroem a cena na qual a manifestação e o efeito das suas competências se expõem e se tornam incertos nos termos do novo idioma que traduz uma nova aventura intelectual. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Exige dos espectadores que desempenhem o papel de intérpretes activos, que elaborem a sua própria tradução para se apropriarem da ‘história’ e dela fazerem a sua própria história”[8]. E é nesta medida apenas que “uma comunidade emancipada é uma comunidade de contadores e de tradutores”, mesmo quando os papéis se invertem, como aconteceu com Carla Filipe, quando dialogou com o doador dos objectos associados ao barco “Liberdade” e traduziu para si, para o seu trabalho, a história que contada sobre esses documentos que inspiraram uma leitura sobre a memória e o passado. Quando esses objectos-documentos passaram a integrar o projecto expositivo de Carla Filipe no Museu do Neo-Realismo, começaram a “falar” a história que a artista quis contar a cada um dos espectadores, deixando a estes o exercício da sua própria tradução. Ou seja, tal como nos lembra Rancière, somos todos (artistas e espectadores) contadores e tradutores de signos e simbologias que nos rodeiam e que nos ajudam a (re)construir os sentidos que nos põem em contacto com o mundo e com a vida. O estatuto pretensamente privilegiado do artista (emissor, detentor da verdade) é aqui posto em causa, a favor de uma espécie de legitimação da função tradutora do receptor que todos acabamos por ser, em dado momento. Desse modo, a utilização de uma “documentalidade” no trabalho de Carla Filipe, traduz uma vontade de, por um lado, exigir a todos um maior esforço no contacto directo com elementos sígnicos que nos transportam a histórias de teor político e social concreto, mas que dependerão sempre, em última instância, das histórias e das convicções que cada um de nós transporta invariavelmente, porque constituintes da nossa singularidade existencial. Por outro, o “documento” – seja uma bandeira ou um chapéu de marinheiro – implica sempre uma vontade de reapresentar o passado como efeito de metonímia, deambulando pelos resquícios de “verdade” que nele podemos encontrar, mesmo que essa “verdade” prefigure uma diversidade constante, de acordo com a experiência de cada um dos espectadores que com ele se cruze.
Na verdade, Carla Filipe procura com o seu trabalho assumir um particular sentido do político, a partir de uma reflexividade que conjuga a criatividade e a receptividade emancipada através dos caminhos abertos pela “veracidade” documental. Tal como aponta Hito Steyerl acerca do “documentalismo no campo da arte”, há hoje uma “corrente documental mais reflexiva que vê nos seus próprios dispositivos ferramentas epistemológicas socialmente poderosas. Nestas obras não existe qualquer intenção de representar a verdade autêntica do político, mas sim de desafiar e mudar a ‘política de verdade’ na qual a sua representação se baseia. As próprias formações epistemológicas e visuais do documentário são, pois, definidas como funções do político”[9]. É neste sentido que a dimensão política da obra de Carla Filipe se afirma com eficácia no panorama da arte contemporânea realizada em Portugal. O “documento” gera uma estratégia de “documentalidade” de onde emana uma nova “veracidade”, mediante a reconfiguração do seu próprio processo de apresentação e comunicação com os espectadores. Nessa medida, quando a artista expõe no atrium do Museu a bandeira do barco-varino “Liberdade” – simplificando a seu aparato ao conjugá-la apenas com o chapéu de marinheiro do comandante dessa embarcação e ainda com os emblemas de clubes desportivos locais ao qual essa figura terá pertencido – está de algum modo a deixá-la “falar”, aceitando-a como documento primordial que nos remete para um passado, uma memória específica, neste caso, de teor político local e nacional, pois foi nessa embarcação, largada do cais de Vila Franca de Xira, que muitos opositores ao Estado Novo, ligados maioritariamente ao Partido Comunista Português (como Álvaro Cunhal, Alves Redol, Fernando Lopes-Graça, ou Bento de Jesus Caraça, entre muitos outros), realizaram alguns “passeios culturais” ao longo do rio Tejo, onde se reuniam e confraternizavam, partilhando aí, na liberdade das águas do Tejo, experiências de acção política clandestina, num tempo em que a liberdade de expressão em Portugal se reduzia ao apoio explicito à “situação” perpetuada pelo regime vigente. Por isso, convocar essa bandeira, revelando as marcas da sua antiguidade, significa recuperar um documento real no intuito de que ele “fale” por si próprio, como testemunho presencial de um tempo passado, ao projectar de imediato imagens de uma acção e de uma memória que tiveram consequências de carácter político e social junto do movimento oposicionista de meados do século XX. Enquanto objecto que desencadeia uma narrativa associada à memória de um tempo politizado pelas circunstâncias de oposição a um regime ditatorial e opressor, essa bandeira realiza a sua função como documento e rememoração, perdida que está há muito a sua função original de sinalização marítima e identificação no espaço de navegação. A “documentalidade” que deste modo instaura um novo e particular jogo de interpretação, permite-nos associar ao trabalho de Carla Filipe uma centelha de “verdade”, ainda assim instável e que nos mantém vigilantes perante a hipótese de uma “verdade” maior, pois é na própria precariedade material e na simplificação dos processos expositivos que a artista nos torna a todos mais conscientes de que tudo não passa de um exercício de interpretação e conflito entre sujeitos, valores, temporalidades e, por fim, de significados.


[1] Cf. Susan Sontag, Contra a interpretação e outros ensaios, (1964). (trad. port.), Lisboa, Gótica, 2004.
[2] Sobre esta alteração de valores e a sua relação com a produção artística cf. Hal Foster, The Return of the Real, The MIT Press, Cambridge, Masschussets, 1996.
[3] Sobre esta questão cf. Hito Steyerl, “Política da verdade: o documentalismo no campo da arte”, in Propostas da Arte Portuguesa. Posição: 2007, (ed. Miguel von Hafe Pérez), Colecção de Arte Contemporânea Público-Serralves, 2007, pp. 147 a 149.
[4] Idem., p. 147.
[5] Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle, Paris, Les presses du réel, 2001, pp. 47-48.
[6] Jacques Rancière, O espectador emancipado, (2008), (trad. port. José Miranda Justo), Lisboa, Orfeu Negro, pp. 27 e 28.
[7] Idem., p. 28.
[8] Idem., p. 35.
[9] Hito Steyerl, op. cit., p. 148.



nota: texto para a exposição "O Povo reunido jamais será-representações gráficas", 2010, Museu do Neo-Realismo










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