Texto de capa


Antes mesmo de existir, já a este texto estava reservado lugar nas margens do livro. Relegado para a capa, ocupa uma camada deste que serve para anunciar o que ele encerra e o que o separa, e ao mesmo tempo protege, do que lhe é exterior, do que está à sua volta. O que se estende ao longo das 64 páginas do livro é o trabalho de Carla Filipe; informado por referências a textos e desenhos preexistentes, ele não deveria partilhar o mesmo local com textos que tivessem os seus como referente. Escrita e desenho associam-se em algumas páginas que reproduzem trabalhos de frottage de Carla Filipe, criados a partir de placas comemorativas encontradas em estações ferroviárias no Reino Unido. O desenho da artista limita-se aqui à acção da mão que pressiona um lápis contra uma folha de papel e o desloca para trás e para diante decalcando linhas de letras em relevo que compõem os nomes e cargos de ferroviários mortos durante as Guerras. Exercido deste modo mecânico, o desenho é utilizado como um processo de arquivamento da escrita, ao mesmo tempo que a escrita dessas placas, que haviam estado no mesmo lugar durante anos a fio, se vê agora impregnada com os movimentos do corpo vivo que actua num tempo e num lugar específicos. Subentende-se uma recusa em usar a técnica fotográfica para o registo de uma dada realidade – o que não significa que Carla Filipe não utilize ocasionalmente fotografias que encontra ou que tira ela mesma como prova de que esteve mesmo num determinado local. Noutras páginas, a escrita está separada das imagens e, uma a uma, as letras são meticulosamente desenhadas a tinta, embora adoptando a aparência de caracteres impressos até ao ponto da simulação. Todo este trabalho é enformado pela dialéctica entre material impresso preexistente (fotografias, ilustrações, lettering) – que restringe o gesto fluido – e a prática do desenho – que impregna os objectos de reprodução mecânica com a incomparável aura do que é feito à mão, único, moroso, revelador de uma sensibilidade distintiva. A sensibilidade, reconhecida na especificidade dos traços, modo singular de Carla Filipe trabalhar a conjunção de condições associadas à materialidade das suas fontes – mais uma marca do corpo do que objecto de decisão –, insinua-se no decurso do processo de devotamente copiar o que se encontra à mão. Por outro lado, fomentado pela memória e o desejo, a autobiografia e preocupações sociopolíticas, o trabalho da imaginação induz uma selecção de determinados objectos e a configuração da respectiva transcrição. A suspeita em relação à preponderância autoral que Carla Filipe partilha com outros artistas contemporâneos reclama a adaptação da consciência imaginativa à escolha e à exposição e a sujeição das particularidades da realização estética às práticas entediantes do refazer, as quais não são todavia determinadas por uma estratégia rigorosa de apropriação, antes estimulam a erupção de brechas entre a fonte e a cópia. A artista permite-se então explorar esses espaços vazios através da introdução de escritos e ilustrações de sua invenção e da criação de conjunções afectivas. A ambição de delegar a criação autoral numa prática da cópia é, no caso de Carla Filipe, acompanhada por uma necessidade de esclarecer o seu próprio posicionamento: em vários dos seus trabalhos ela refere-se a si mesma como uma artista proveniente das margens geográficas da Europa e das margens sociais do mundo da arte globalizada, como alguém que cresceu em localidades periféricas de Portugal, no seio de uma família de ferroviários, e que domina mal o inglês (o que se reflecte nas frequentes flutuações entre o português e o inglês nos seus textos). Carla Filipe aborda os seus temas como uma estranha, expondo contudo os pontos de contacto que com eles mantém – seja através da evocação da história da sua família quando aborda uma questão relativa aos caminhos-de-ferro, seja pela referência à sua experiência enquanto paciente no contexto de um trabalho encomendado para celebrar o aniversário de um hospital. Cada uma das suas obras abraça um tema em particular, ocasionalmente mas nem sempre em resposta a uma encomenda: acontecimentos miraculosos de crescimento biológico no Entroncamento, durante o Fascismo, desenhos seus rejeitados, uma viagem de carro do Porto a Kassel para visitar a documenta, uma ida a Londres, outra a Roterdão (os três trabalhos expostos em conjunto sob o título “Estudo de campo: desertar”), os caminhos-de-ferro, o Hospital de São João no Porto, o grupo industrial RAR, sediado na mesma cidade, etc. Carla Filipe adopta a atitude de uma etnógrafa em busca de revelações na internet e viaja através da Europa para reunir conhecimentos sobre culturas remotas (inclusive as do seu próprio país) – ironicamente, uma pessoa originária das esferas marginais do Sul a investigar as sociedades da abundância e do poder. Em alguns casos, o seu trabalho baseia-se em panfletos, anúncios, mapas, jornais gratuitos e fotografias que colhe em momentos determinados e guarda para usar mais tarde. Noutros ainda, faz pesquisa especificamente com o objectivo de obter imagens e textos para tratar um determinado assunto. A acumulação de factos e acontecimentos impõe-se, submerge o tema; ou então os documentos relevantes são obtidos através de uma pesquisa focalizada – as mais das vezes, através de elementos da cultura de massas. O desafio está em aceitar e recusar, em afunilar as opções que permitem avançar e em derivar a partir de um foco inicial de atenção. A pesquisa respeitante ao Hospital de São João revelou que o respectivo Serviço de Urgência foi inaugurado em 1964, na sequência da afluência ao hospital de numerosas vítimas do grave acidente ferroviário nesse ano ocorrido em Custóias, o que fez Carla Filipe regressar às suas origens familiares; o desenho do próprio edifício hospitalar e ainda as pesquisas da artista em torno dos caminhos-de-ferro britânicos evocaram o passado ditatorial de Portugal; a sua viagem artística a Roterdão confrontou-a com a destruição da cidade durante a Segunda Guerra Mundial; o encontro com as enfermeiras de Richard Prince relembraram-lhe o hospital e a sua própria prática de copiar matéria impressa preexistente. A demora é uma condição determinante para a criação de um trabalho, quer pelo tempo necessário para a cópia paciente de extenso material documental quer pelo tratamento de um tema como as viagens a vários destinos europeus, desenvolvido anos depois dos acontecimentos reais. A demora e o hiato entre a cópia e o original dão carta branca à imaginação. Todos os temas de Carla Filipe são sistemas sociais bastante bem definidos: os caminhos-de-ferro, um hospital, uma unidade de produção industrial, uma cidade, a família. O seu trabalho consiste no processamento de documentos que evocam estes sistemas através de casos particulares. O objectivo não é analisá-los nos moldes em que a investigação científica o faria mas antes traduzi-los nas páginas de um trabalho artístico que expõe uma visão idiossincrática da história e da sociedade. Ao subordinar a sua criação artística a escritos e ilustrações preexistentes, Carla Filipe coloca-se a si mesma na origem dos relatos transversais que subvertem o conhecimento comum para oferecer vislumbres de uma incrível realidade.

Ulrich Loock



nota: texto para a capa do livro de artista  "An ilustrated guide to he British Railways to my Study", 2010




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