Da biografia como história


Temos vindo a assistir, nos últimos anos, a uma tendência crescente entre os artistas mais jovens para, alicerçando as suas práticas numa recuperação mais ou menos metódica de alguns temas centrais da modernidade estética e social, a partir daí construírem estruturas plásticas onde o presente e esse passado se confrontam. Esse é o caso, por exemplo, dos inúmeros trabalhos que recuperam obras da cultura arquitectónica ou urbanística de modernidades específicas – do leste europeu, da América latina, etc. –, para as colocarem em modelos de questionamento tensivo, através de dispositivos escultóricos, instalações videográficas, apropriações fotográficas comentadas e propostas similares. Se nalguns casos este tipo de estratégia se compreende e acaba por resultar positivamente, confesso que na maior parte destes trabalhos não consigo já vislumbrar mais do que maneirismos conceptualmente torpes e formalmente aborrecidos.
Tal não é o caso da prática que delimita o território criativo de Carla Filipe, artista que lenta, paciente e incisivamente tem vindo a trabalhar um universo muito próprio, em que elementos autobiográficos se cruzam com indagações de cariz mais abrangente e onde história, política e sociologia se podem imiscuir num plano de pesquisa sempre irreverente e idiossincrático.
O desenho é o meio mais imediato e recorrente na sua obra: não o desenho enquanto construção de um qualquer tipo de reinterpretação do mundo através de formas ou signos esteticamente (auto)referenciais, antes um processo que visa a criação de pequenos episódios narrativos onde a linguagem (a palavra) se destaca. Muitos dos seus trabalhos configuram recolhas quase diarísticas de experiências vividas, que tanto podem passar por viagens, observações de padrões de comportamentos sociais contemporâneos (como as culturas punk, pop ou rock contemporâneas) ou, de modo primordial, vivências que emanam de uma circunstância biográfica particular, isto é, o facto de ser filha de ferroviários.
Numa conversa de circunstância aquando da compra de um bilhete de comboio dizia-me o vendedor que a mais baixa incidência de divórcios se encontrava entre os ferroviários. Estranhei o dado estatístico e, mostrando-lhe a minha surpresa, explicou-me o personagem, sorrindo, que tal se ficava a dever ao facto de muitos matrimónios se manterem enquanto fachada somente para deste modo os descendentes não perderem direitos específicos desse estatuto. Este episódio fez-me pensar nos universos paralelos que compõem a nossa sociedade, onde interesses corporativos frequentemente desconhecidos de terceiros podem, de facto, tornar-se determinantes em biografias individuais. E interessou-me, sobretudo, por ver nele espelhado o modo ao mesmo tempo sincero, catártico e por vezes irónico como Carla Filipe verte para o seu trabalho este estatuto corporativo. Dele deduzimos as centenas ou milhares de horas passadas em viagens de comboio, das quais muitas terão sido aproveitadas como espaço de ateliê improvisado ou como espaço de observação vital. Como referia George Simmel no início do século XX, foi com o advento do caminho-de-ferro, dos autocarros e dos eléctricos que as pessoas ganharam a oportunidade de poder ou dever olhar-se umas às outras minutos ou horas sem se falar.
Para além do desenho – que contém, como referi, uma dimensão processual e contextual que lhe define o carácter –, a artista também se movimenta no território da performance e da instalação. Nestas regressam temas de sociabilidade (a criação de hortas comunitárias que reenviam para as hortas dos ferroviários) ou intervenções mais recentes como Desterrado, na Manifesta que decorre actualmente em Múrcia, onde a artista se debate com a questão premente da imigração num contexto de cruzamento forçado e tenso de culturas.
Se as vivências pessoais lhe servem de sismógrafo vital para a apreensão das movimentações políticas e sociais que a envolvem, estas devolvem à sua biografia (que aqui só interessa na medida em que supre uma passagem para a sua prática artística continuada) uma dimensão especulativa universal. No caso da obra que agora se apresenta, ela corresponde a um trabalho de campo realizado a partir de uma residência artística em território britânico. Naturalmente, a autora dirigiu o seu interesse para a história dos caminhos-de-ferro neste país, que, como sabemos, neles encontrou uma espinha dorsal vital para a construção do espaço da modernidade. Assim, aquilo que nos é dado contemplar tem por base uma série de apropriações de páginas de jornal de diversas épocas onde esta temática é abordada, imagens recolhidas in situ ou, na maior parte dos casos retiradas da internet, num fenómeno que curiosamente replica a experiência dos jovens estudantes de Belas-Artes em Portugal que, há uns anos atrás, conheciam a maior parte das obras mediante reproduções em revistas ou catálogos. O que Carla Filipe nos apresenta resulta naquilo a que poderíamos chamar um meta-texto no qual, na sequência de uma prática continuada, o inglês enquanto língua hegemónica se curtocircuita com um português de recurso. A falha hermenêutica daí decorrente remete para a ilegibilidade daquilo que voluntariamente a artista pretende que se mantenha como parte de um processo não fechado, num desvelar temporário de um work in progress, de um arquivo ainda em fase de construção.
Esta condição corresponde e ecoa, ainda que de forma porventura mais intuitiva do que racional, um estado recorrente na análise cultural contemporânea, no contexto da qual a estética do fragmento, do fracasso enquanto entendimento fundamental de uma realidade em permanente mutação e, finalmente, do carácter rizomático dessa mesma realidade se sedimentam como modos de apreensão mais avisados daquilo que nos rodeia.
Descentrar, então. O colapso origina uma leitura aberta das imagens-texto. Ruínas modernas, a imigração, a morte e os seus sistemas de organização, o corporativismo (sindical), a guerra ou o estatuto da mulher são referentes apropriados sem claro destino judicativo. A construção de sentido é pressentida enquanto construção de um putativo sentido individual. Ou seja, aquilo que ressalta no trabalho (neste trabalho) de Carla Filipe é a sua vontade de se apropriar criativamente da realidade para nos propor uma interpretação que resulta tanto mais penetrante quanto nos soubermos deixar levar nas suas derivas trans-históricas


Miguel von Hafe Pérez


nota: texto para a capa da publicação de artista "An ilustrated guide to he British Railways to my Study", 2010
/ Fundação Calouste Gulbenkian ( Portugal / UK)




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