Idiosyncrasy
noun
A behavior or way of thinking
that is characteristic of a person.
A language or behaviour
that is particular to an individual or group.
A peculiarity that
serves to distinguish or identify.
Se
existe um elemento, uma marca ou uma característica suficientemente abrangente
que permita delimitar, ou pelo menos encetar um entendimento mais vasto e
articulado do trabalho de Carla Filipe, terá que ser, sem dúvida, uma certa
noção de idiossincrasia. No entanto, problematizar uma prática artística tão
complexa, rica e multifacetada a partir de uma noção aparentemente tão simples
pode apresentar-se como um exercício redutor, algures entre uma simplificação
abusadora ou um mero acto de ilustração do conceito. Assim, mais do que
vincular (conformar) o trabalho de Filipe a uma dimensão meramente
idiossincrática, pretendemos realizar o exercício inverso, isto é, a partir do
seu corpo de trabalho, e de Arquivo Surdo-Mudo, o projecto que agora se
apresenta, tentar esboçar um conjunto de elementos que possam constituir (e
delimitar) um modo de operar fundamentalmente idiossincrático. Dito de outro
modo, acreditamos que não só é possível como relevante definir, a partir da
obra de Filipe, um conjunto de “regras” que
enformam a idiossincrasia enquanto categoria apta a problematizar a
prática artística contemporânea.
O
primado da autobiografia
Parece-nos,
portanto, que a centralidade da autobiografia, enquanto motor de uma visão
subjectiva do mundo, que vislumbramos em Arquivo Surdo-Mudo, parece
configurar um primeiro elemento delineador do nosso conceito de idiossincrasia.
A
relevância do contexto
A
forma como o contexto é interiorizado e utilizado pela artista, não apenas como
ponto de partida, mas também como processo de trabalho e eventualmente ponto de
chegada, parece sugerir a sua centralidade enquanto elemento definidor de uma
prática artística dita idiossincrática.
A
pulsão do arquivo
Vimos
que o primado da autobiografia e a relevância do contexto se apresentam como
elementos centrais no entendimento do trabalho de Carla Filipe e acreditamos
que possam ser definidos como aspectos constitutivos do conceito de
idiossincrasia, entendida neste contexto, como uma ferramenta ou categoria que
nos permite desenvolver uma reflexão sobre a prática artística contemporânea.
Sendo aqueles dois elementos interdependentes, na medida em que é a partir
da autobiografia que a artista pensa o
contexto que a envolve, mas simultaneamente, é o contexto que lhe devolve as
experiências que vão solidificar a sua história de vida, um terceiro aspecto,
de carácter mais transversal, age não só como síntese mas também, e sobretudo,
como materialização dos dois anteriores.
A
pulsão do arquivo manifesta-se então como o resultado visível da interacção
entre autobiografia e contexto e é partir deste ponto que a artista desenvolve
o seu trabalho. O arquivo, assim definido, é entendido de uma forma distinta do
que tem vindo a ser prática comum na última década e que foi já apelidado de
impulso ou febre arquivista e onde o artista assume, de alguma forma, o papel
de um historiador ou, mais especificamente, de um historiógrafo. O arquivo,
para Carla Filipe, encontra-se em permanente construção e testemunha o seu
interesse pela lógica do documento, do testemunho, não apenas através de
jornais, mas por toda uma panóplia de material impresso, bem como outros
objectos que ajam enquanto repositórios do que é, e que foi, notícia. De toda a
informação que recolhe, uma parte fica para o seu arquivo pessoal e outra é
utilizada no trabalho que origina a recolha. A lógica do inventário, desta
forma constituída, permite a Filipe a manutenção de uma gramática de
interesses, dos seus interesses, a que recorre sempre que necessário e a partir
do qual consegue estabelecer episódios narrativos, sejam a história dos
caminhos-de-ferro no Reino Unido ou os fenómenos do Entroncamento, por exemplo.
Em Arquivo Surdo-Mudo, adjectivação que não será de todo ingénua, o
arquivo age mais uma vez como materialização do complexo jogo de forças entre o
individual e o colectivo. Assim, uma colecção de imagens, seleccionada do
arquivo pessoal que a artista tem vindo a acumular ao longo dos anos, é
apresentada em diversos conjuntos. As imagens, que funcionam como ponto de
entrada para um imaginário despoletado pela ideia do Comunismo, e incluem
postais antigos, recortes de livros, propaganda, autocolantes, entre outros,
sinalizam a tentativa, por parte de Filipe, de compreensão tanto dos
acontecimentos geopolíticos que estiveram na génese da queda do bloco de leste,
como da disjunção perceptiva relativa a esses mesmos eventos, por ambos os
lados da cortina ideológica. A pulsão arquivista actua então como uma forma
pessoal e subjectiva não só de se relacionar, como de estruturar o mundo à sua
volta. É o arquivo, portanto, que permite articular a sua visão do mundo com a
visão que o mundo dela tem e assim criar um corpo de trabalho em que o pessoal
é o colectivo que é o pessoal também, numa circularidade ontológica que
trespassa e subverte, de algum modo, a hierarquia entre subjectividade e
objectividade, especulação e sistematização, indivíduo e comunidade.
A
pulsão arquivista é o último elemento, ou regra, que extraímos a partir do
trabalho de Carla Filipe, assim delimitando uma tríade especulativa que tenta
apreender o conceito de idiossincrasia, que acreditamos constituir um ponto
relevante na discussão dos pressupostos que enformam a prática artística contemporânea.
Ainda que dissemelhante dos outros dois, porque transversal, a estrutura e modo
de funcionamento do arquivo permite ligar e tornar visível a mútua dependência
que biografia e contexto exercem entre si, abrindo assim o campo de
possibilidades virtualmente inesgotáveis da idiossincrasia.
João Mourão e Luis Silva
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------