As três regras da idiossincrasia I Carla Filipe's three rules of idiosyncrasy




Idiosyncrasy
noun
A behavior or way of thinking that is characteristic of a person.
A language or behaviour that is particular to an individual or group.
A peculiarity that serves to distinguish or identify.


Se existe um elemento, uma marca ou uma característica suficientemente abrangente que permita delimitar, ou pelo menos encetar um entendimento mais vasto e articulado do trabalho de Carla Filipe, terá que ser, sem dúvida, uma certa noção de idiossincrasia. No entanto, problematizar uma prática artística tão complexa, rica e multifacetada a partir de uma noção aparentemente tão simples pode apresentar-se como um exercício redutor, algures entre uma simplificação abusadora ou um mero acto de ilustração do conceito. Assim, mais do que vincular (conformar) o trabalho de Filipe a uma dimensão meramente idiossincrática, pretendemos realizar o exercício inverso, isto é, a partir do seu corpo de trabalho, e de Arquivo Surdo-Mudo, o projecto que agora se apresenta, tentar esboçar um conjunto de elementos que possam constituir (e delimitar) um modo de operar fundamentalmente idiossincrático. Dito de outro modo, acreditamos que não só é possível como relevante definir, a partir da obra de Filipe, um conjunto de “regras” que  enformam a idiossincrasia enquanto categoria apta a problematizar a prática artística contemporânea.


O primado da autobiografia

O trabalho de Carla Filipe tende a convocar um universo simultaneamente específico e único. Esse universo parte sempre de elementos autobiográficos ou de vivências diárias, recolhidas de uma forma diarística, e que operam como o local psicológico, o ponto de vista, a partir do qual a artista entende e se relaciona com o mundo que a rodeia. Tal postura é mais intuitiva que racional, mais especulativa que sistematizadora e, nas palavras da própria artista, porque é de autobiografia que se trata, “é impossível (…) sintetizar todo o meu processo a conceitos contemporâneos”. Assim, esta impossibilidade (ou irrelevância) declarada de conformar um corpo de trabalho, e o processo que está na sua origem, a uma estrutura sistemática e articulada de pensamento configura a centralidade e a irredutibilidade da subjectividade biográfica que se encontram no cerne do projecto de Filipe. Não será, portanto, de estranhar que na génese de Arquivo Surdo-Mudo esteja o universo fantasmagórico e sedutor da experiência do Comunismo em Portugal durante a sua infância nos anos oitenta. Se, por um lado, o Comunismo era percebido pela jovem Carla Filipe como algo extremamente assustador, o resultado de expressões populares negativas (a mais conhecida sendo “os comunistas comem crianças ao pequeno-almoço”), a ameaça de uma Guerra Civil semelhante à espanhola e a tentativa da sua família negar, perante a comunidade, a militância de um tio, por outro era também terrivelmente apelativo, já que amigas suas, filhas de ex-combatentes do Ultramar, lhe transmitiam uma visão do Comunismo alegre e feliz, com a promessa de uma vida moderna e colectiva na qual a Festa do Avante simbolizava o momento de celebração desse novo estilo de vida. É, então, a partir da sua própria percepção do que era o “Leste”, antes da queda do Muro de Berlim, que Filipe parte para o projecto que expõe em Praga, subjectivando e descentrando geograficamente uma versão muito particular (e sua) do que se tornou conhecido como pós-socialismo.

Parece-nos, portanto, que a centralidade da autobiografia, enquanto motor de uma visão subjectiva do mundo, que vislumbramos em Arquivo Surdo-Mudo, parece configurar um primeiro elemento delineador do nosso conceito de idiossincrasia.


A relevância do contexto

Ainda que a pulsão subjectivante, associada ao ímpeto autobiográfico, habite o cerne do seu trabalho, a artista não padece de nenhuma forma de autismo autoral, reminiscente de um ideal romântico de auto-exclusão. Surpreendentemente, a autobiografia torna-se tanto mais relevante quanto maior é a sua articulação com o colectivo, articulando-se com movimentos sociais ou categorias de apreensão do mundo mais abrangentes como história, política ou economia. Existe assim em Filipe, para além das referências à sua própria biografia, um olhar atento, curioso e porventura crítico sobre o contexto em que se insere. Esse olhar consubstancia-se num modus operandi específico, onde o trabalho de campo ganha uma preponderância marcante e a noção de processo atravessa toda a sua obra. Reunindo sempre referências sobre o tema ou o contexto em que escolhe trabalhar, os projectos que desenvolve relacionam-se sempre directamente com o contexto em que são expostos e com o público que a eles acede. Assim, em Praga, e partindo da experiência de juventude descrita anteriormente, marcada por uma alteridade não só ideológica, como também geográfica, estabelece um ponto de contacto entre os episódios da história recente da República Checa e de Portugal, operando nessa tradução um nivelamento das expectativas do visitante, que perde a capacidade de distinguir e identificar a origem das referências que lhe são apresentadas. Grandes bandeiras alusivas às lutas políticas do passado são apresentadas, mas o seu conteúdo, as mensagens que transmitem, são apagadas, mantendo-se apenas os seus aspectos formais. Nesta remoção do que é particular (específico), o texto e a língua, o leste comunista e o extremo ocidente apresentam-se como intercambiáveis. O contexto continua também a desempenhar um papel central no livro de artista que Filipe apresenta em Arquivo Surdo-Mudo. Um jornal de grandes dimensões, exemplar único, escrito-desenhado a esferográfica sobre papel utilizado pela churrasqueira América, no Porto, para embrulhar frango assado, apresenta traduções para checo de autores portugueses como José Gil, Eduardo Lourenço, Padre António Vieira, Fernão Mendes Pinto, e também da artista e transporta, desta forma, um conjunto de narrativas sobre o local da sua origem para o da exposição. Tradução e transporte são assim as ferramentas escolhidas por Filipe para trabalhar sobre a relação entre o contexto de origem e o contexto da exposição, entre original e traduzido (ou copiado), assumindo desde o início o carácter sempre contingencial e potencialmente disruptor que as suas acções podem tomar.

A forma como o contexto é interiorizado e utilizado pela artista, não apenas como ponto de partida, mas também como processo de trabalho e eventualmente ponto de chegada, parece sugerir a sua centralidade enquanto elemento definidor de uma prática artística dita idiossincrática.


A pulsão do arquivo

Vimos que o primado da autobiografia e a relevância do contexto se apresentam como elementos centrais no entendimento do trabalho de Carla Filipe e acreditamos que possam ser definidos como aspectos constitutivos do conceito de idiossincrasia, entendida neste contexto, como uma ferramenta ou categoria que nos permite desenvolver uma reflexão sobre a prática artística contemporânea. Sendo aqueles dois elementos interdependentes, na medida em que é a partir da  autobiografia que a artista pensa o contexto que a envolve, mas simultaneamente, é o contexto que lhe devolve as experiências que vão solidificar a sua história de vida, um terceiro aspecto, de carácter mais transversal, age não só como síntese mas também, e sobretudo, como materialização dos dois anteriores.
A pulsão do arquivo manifesta-se então como o resultado visível da interacção entre autobiografia e contexto e é partir deste ponto que a artista desenvolve o seu trabalho. O arquivo, assim definido, é entendido de uma forma distinta do que tem vindo a ser prática comum na última década e que foi já apelidado de impulso ou febre arquivista e onde o artista assume, de alguma forma, o papel de um historiador ou, mais especificamente, de um historiógrafo. O arquivo, para Carla Filipe, encontra-se em permanente construção e testemunha o seu interesse pela lógica do documento, do testemunho, não apenas através de jornais, mas por toda uma panóplia de material impresso, bem como outros objectos que ajam enquanto repositórios do que é, e que foi, notícia. De toda a informação que recolhe, uma parte fica para o seu arquivo pessoal e outra é utilizada no trabalho que origina a recolha. A lógica do inventário, desta forma constituída, permite a Filipe a manutenção de uma gramática de interesses, dos seus interesses, a que recorre sempre que necessário e a partir do qual consegue estabelecer episódios narrativos, sejam a história dos caminhos-de-ferro no Reino Unido ou os fenómenos do Entroncamento, por exemplo. Em Arquivo Surdo-Mudo, adjectivação que não será de todo ingénua, o arquivo age mais uma vez como materialização do complexo jogo de forças entre o individual e o colectivo. Assim, uma colecção de imagens, seleccionada do arquivo pessoal que a artista tem vindo a acumular ao longo dos anos, é apresentada em diversos conjuntos. As imagens, que funcionam como ponto de entrada para um imaginário despoletado pela ideia do Comunismo, e incluem postais antigos, recortes de livros, propaganda, autocolantes, entre outros, sinalizam a tentativa, por parte de Filipe, de compreensão tanto dos acontecimentos geopolíticos que estiveram na génese da queda do bloco de leste, como da disjunção perceptiva relativa a esses mesmos eventos, por ambos os lados da cortina ideológica. A pulsão arquivista actua então como uma forma pessoal e subjectiva não só de se relacionar, como de estruturar o mundo à sua volta. É o arquivo, portanto, que permite articular a sua visão do mundo com a visão que o mundo dela tem e assim criar um corpo de trabalho em que o pessoal é o colectivo que é o pessoal também, numa circularidade ontológica que trespassa e subverte, de algum modo, a hierarquia entre subjectividade e objectividade, especulação e sistematização, indivíduo e comunidade.

A pulsão arquivista é o último elemento, ou regra, que extraímos a partir do trabalho de Carla Filipe, assim delimitando uma tríade especulativa que tenta apreender o conceito de idiossincrasia, que acreditamos constituir um ponto relevante na discussão dos pressupostos que enformam a prática artística contemporânea. Ainda que dissemelhante dos outros dois, porque transversal, a estrutura e modo de funcionamento do arquivo permite ligar e tornar visível a mútua dependência que biografia e contexto exercem entre si, abrindo assim o campo de possibilidades virtualmente inesgotáveis da idiossincrasia.


João Mourão e Luis Silva

nota : texto para a exposição "Arquivo Surdo-Mudo", Tranzit.Display , Setembro de 2010





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