BORDAS DE ALGUIDAR
Em Bordas de Alguidar, exposição patente na Galeria Graça Brandão, Lisboa, Carla Filipe dá continuidade a uma reflexão que tem marcado profundamente o seu trabalho e que se prende com os desenvolvimentos do poder global e suas implicações nas estruturas sociais, culturais e comunitárias das sociedades atuais. Porém, não é a interpretação ou o comentário do mundo que lhe parece interessar, mas antes a possibilidade de operar criticamente sobre ele. Ora esta possibilidade no seu caso, como sabemos, é sempre pensada e formulada a partir de memórias pessoais e experiências vividas, pelo que o seu trabalho apresenta uma reversibilidade de sentido muito particular. Se, por um lado, convoca o mundo através de contingências vivenciais, estas, por sua vez, extravasam o plano pessoal já que se mistura nos dados do próprio mundo, gerando situações inesperadas.
Para esta exposição em concreto, Carla Filipe apropriou-se da expressão popular Bordas de Alguidar (que significa os restos de comida que ficavam presos no alguidar da refeição), alargando o seu sentido ao contexto da atual crise económica para problematizar precisamente o modo como hoje o capitalismo celebra a obsolescência de certos saberes e práticas e os transforma em excedentes votados ao desaparecimento.
Se não há cultura, não há nada, um dos trabalhos realizados para esta exposição, é a este respeito exemplar, já que se ocupa de uma atividade profissional quase extinta. Trata-se de um vídeo documental que regista a visita ao espólio de um alfarrabista centenário do Porto que, resistindo aos processos de gentrificação urbana, mantém ainda as portas abertas. A visita ao espaço é guiada pelo proprietário, enquanto a câmara acompanha de perto a inventariação dos livros, a sua arrumação por áreas científicas e nos mostra alguns títulos mais raros ligados à cultura e à arte da modernidade portuguesa, como a “Águia”, a “Ilustração Portuguesa” ou as publicações de Rafael Bordalo Pinheiro: o “António Maria”, os “Pontos nos II” e “A Paródia”.
É justamente o universo crítico de expressão popular e caricatural, desenvolvido por Bordalo Pinheiro na transição para o século XX, que Carla Filipe convoca e reutiliza nos quatro desenhos com colagem que se juntam à exposição. Intitulados Bordas de Alguidar, em diálogo com “A Paródia” e “Pontos nos II”, estes trabalhos definem uma continuidade narrativa entre um passado pré-republicano e um presente neo-liberal pragmático através da figura do Zé-povinho. Acompanhado de novas personagens (Cavaco Silva, Passos Coelho ou José Viegas), temos um Zé-povinho que agora articula com Angela Merkel, adotando a mesma atitude subserviente que lhe é característica e garantia de pobreza, falta de cultura, recessão, extinção dos setores produtivos ou desinvestimento na educação.
Mas este ciclo que retorna ganha contornos ainda mais curiosos naInstalação Rochard. Neste trabalho, a artista leva à parede um conjunto de livros abertos adquiridos no alfarrabista que visitou: uma História de Portugal e exemplares do Viajante Universal e doTestamento Vermelho. Sem relação aparente, as narrativas em jogo, histórica e literária, revelam subitamente aproximações surpreendentes tanto estilísticas, assumindo o romance a sua estrutura, como do ponto de vista da ação. Em causa estão episódios históricos de Portugal do século XV e XVI, como as pensões dos professores de filosofia e retórica em dívida ou as expedições pelo oriente em busca de ouro que se cruzam com as aventuras ficcionais de duas personagens que precisam de levantar e trocar as suas bonds, ações e obrigações. O efeito de reflexo que o vocabulário pode repercutir na atualidade é todavia reforçado, não sem ironia, pelos desenhos gravados por traças nas páginas dos livros, um puro ato casuístico que nos sugere uma técnica antiga psicológica de auto-expressão e identidade.
No último trabalho da exposição, intitulado Mãos vazias: a mão não é só um orgão de trabalho, mas também produto deste, a artista volta a reunir, agora no chão, um conjunto de objetos antigos, concretamente 41 ferramentas de trabalho em ferro e madeira compradas em feiras de 2ª mão. Se o comércio destes objetos promove um fetichismo em torno das suas formas e memórias, Carla Filipe, ao resgatar e reinventar o seu uso na galeria, inverte aquela ordem, ativando o potencial emancipador dos saberes e práticas que o presente soube esquecer.
Neste sentido, Bordas de Alguidar rompe criticamente com a circularidade inerente a uma narrativa que insiste em repetir-se e com um certo bem-estar proporcionado por uma consciência cínica de si.
Sofia Nunes
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